domingo, 12 de fevereiro de 2012

Por um mundo mais humano no quarto de despejo

           Essa semana o meu livro #PoucasPalavras, do Renan Inquérito, chegou aqui na minha caixinha de correio, ainda não tive tempo de ler tudo, mas grande parte do que li já me cativou.  Fiz igual criança que abre o livro e busca primeiro as gravuras (hehehe) e nisso dei de cara com uma ilustração do grafiteiro Mundano  ♥, artista com a incrível capacidade de falar muito através das imagens: #PoucasPalavras.

Grafittis do Mundano em diversas carroças de catadorxs. 
Mundano (nome surgido da combinação das palavras MUNDO + HUMANO) primorosamente ilustrou o livro de Renan Inquérito, o que resultou num trabalho de conversas líquidas entre forma e conteúdo. A página 119 chamou minha atenção logo de cara, nela há uma arte que faz eco ao projeto muito fera, encabeçado pelo grafiteiro, chamado Cidades Recicláveis. Essa ação consiste em lançar mão das carroças dxs trabalhadorxs catadorxs de materiais recicláveis como veículo de mensagens entre esses, o artista e a cidade.  Mundano, em muitas entrevistas, diz que a ideia da valorização de um trabalho tido como abjeto pela população figura como mote primeiro do projeto. Impossível seria esse trabalho não me remeter à Carolina de Jesus    , autora do muito estimado Quarto de Despejo: diário de uma favelada, lançado em 1960, obra em que a escritora retratou seu cotidiano como catadora de lixo e moradora da favela do Canindé e enunciou: “Quem trabalha como eu tem que feder!” também na página 119!
            Fato que a coincidência maior aqui não é o número igual das páginas, mas a crítica à sociedade que pretende esconder o indesejado em baixo do tapete do quarto de despejo. Na cena em questão, Carolina estava refletindo acerca dos comentários que uma mulher fez ao passar por ela dizendo que seu cheiro era horrível, semelhante ao do bacalhau. A escritora, que deu sentido à literatura pra mim, disse a tal senhora que havia trabalhado muito, carregado mais de 100 quilos de papel, que estava calor, que o corpo humano não prestava e finalizou: “quem trabalha como eu tem que feder!” repito no texto, uma vez que nada no mundo literário me arrepiou tanto nessa vida.  Em diversas passagens do seu livro, Carolina diz que a favela é o quarto de despejo da cidade, assim como seus moradores são o lixo da mesma. Carolina já denunciava a relação nada amistosa que a cidade alimenta com quem trabalha com o lixo e vive no espaço do despejo, arquitetado por seus poderosos nas primeiras décadas do século XIX, as favelas.   
          Mundano já pintou mais de 150 carroças nas cidades de São Paulo, Nova York (EUA), Buenos Aires (Argentina), Santiago e Valparaíso (Chile) e agora tem a empreita de levar o trabalho para outras cidades brasileiras. O grafiteiro atua em conjunto com xs catadorxs, inclusive as frases são idéias dos mesmos. O profeta Gentileza leva (pois ainda estão lá) palavras bonitas, para a vida de milhares de pessoas que circulam pelo caos citadino, através do muro estático, o alcance de várias carroças que se movem por todos os cantos da urbe é tamanho, ótima ideia, ótimos recados! 
        As pessoas não têm noção da dimensão do trabalho dxs catadorxs de material reciclado diante da cidade. Segundo o IBGE, na Pesquisa Nacional de Saneamento Básico de 2000 (imaginem isso hoje!), mais de 125 mil toneladas de resíduos domiciliares são coletadas todo dia no Brasil. Historicamente, os trabalhos de menor prestígio são ocupados por pessoas pobres, sem estudo formal e negras, ou seja, xs despejadxs. Esses que a cidade quer invisiveis, desde os tempos de Carolina, são agentes transformadores do excedente da mesma, Carolina refletiu sobre isso e disse: “Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Não mais se vê os corvos voando nas margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos” (2005: 48). Combater o preconceito e a ignorância com arte é uma gentileza dxs artistas do reciclo, do grafite e da escrita com o mundo.

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Instalação audiovisual que reproduzia as paredes do barraco de Carolina
Uma das frases dxs catodores pintadas por Mundano nas carroças diz: “Meu trabalho é  honesto e o seu?”. Essa é uma das muitas alfinetadas que Carolina de Jesus destinou aos políticos em  uma obra, a autora tinha uma perspectiva muito aguçada das manobras políticas diante da favela: “Eles gastam nas eleições e depois aumentam qualquer coisa. O Auro (deputado federal na ocasião) perdeu (dinheiro no período eleitoral), aumentou a carne. O Adhemar (governador de São Paulo naquele ano) perdeu, aumentou as passagens. Um pouquinho de cada um, eles vão recuperando o que gastam. Quem paga as despesas das eleições é o povo” (2005: 114).  Com certeza Carolina de Jesus gostaria de pintar em seu carrinho (ela o chama assim) de catar papel: “Reciclem os políticos”. 
          O trabalho dxs catodorxs é alvo de milhões de violências, a discriminação experenciada por essas pessoas é algo de uma agressão tão profunda que rouba minhas palavras quando tento elucidá-la. Quando eu era criança, meu pai me explicou o motivo pelo qual ele sempre andava perfumado e bem arrumado. Senhor Huanderson era lanterneiro e pintor de automóveis, o que o obrigava a trabalhar sempre molhado, sujo de tinta, suado etc. Hoje, ele é tem sua própria loja, já caminhou muito na vida e alcançou um novo posto social (inshalá!rs), quando ele contou pra mim o porquê de andar arrumado quando estava fora do trabalho eu tenho certeza que não compreendi bem (era pequenina), mas ficou na memória o fato dele sempre ter me mostrado as muitas faces do racismo que, quando combinado às situações de trabalho subalterno e racializado, acaba forjando amarras ainda mais potentes de opressões que ele tentava minimizar a sua maneira. A relação do nosso corpo com o trabalho é cheia das escalas de diferenciações, gradações de cor, de ambiente, classe e muitas outras influências. Carolina de Jesus, alvo de constantes acusações sobre sua limpeza, desabafou em seu diário: “SE ESTOU SUJA É PORQUE NÃO TENHO SABÃO” (2005: 89). A autora, na citação que fiz bem no começo do post, fala da relação do seu corpo com seu fazer, aqui ela reflete sobre sua condição econômica de miséria e as implicações disso diante da sua apresentação pessoal. Por mais que pareça improvável (há quem possa achar que é só um desenho numa carroça), o trabalho do Mundano age diretamente sobre a autoestima de quem, por suas condições de trabalho, se vê sempre sujx, potencializando, então, os apontamentos de toda uma sociedade que hostiliza o que não se encaixa em seus padrões.
         O grafiteiro e xs catadorxs encontraram uma forma perspicaz de piscar prxs outrxs cidadãos e cidadãs em frases como: “Meu carro não polui e o seu?” ou “Agente ambiental trabalhando, não buzine”. Essas cutucadas são de uma sutil ironia, muito gentis e cheias de efeitos, o velho e eficaz tapa com luva de pelica: faço meu trabalho, garanto sobrevivência pra mim e melhorias pra você, cidade, me respeite. Carolina de Jesus, não apenas nessa obra, mas também em seu Diário de Bitita, nos leva a um mergulho sobre a vida infausta, como ela mesma se refere a sua. São muitas as agruras de quem está nas ruas, é viver, é morrer, tudo junto numa angustiante combinação. Longe de mim colocar flores onde muitos dissabores, mas longe de mim também podá-las. Tiro muito meu chapéu para quem tenta modificar nossos cenários sociais engessados e sufocantes, Mundano, em parceria com o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, faz isso a olhos vistos. Temos a arte atuando como agente contrária à invisibilidade que a cidade imprime, seja ela sendo expressa nos muros, nos livros, nas músicas, nos diários ou nas carroças.


* A montagem das quatro carroças com a arte do Mundano, assim como a fotografia final, foram retiradas do endereço: http://tedxveropeso.blogspot.com/2011/08/mundano-arte-como-instrumento-de.html
** A segunda imagem é uma instalação audiovisual montada na ocasião do “Seminário 50 anos do quarto de despejo” que reproduzia as paredes do barraco de Carolina na favela do Canindé, disponível em: http://comunidadequilombaque.blogspot.com/2010/11/quarto-de-despejo.html

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Ninguém é inocente na cidade cinza

A arrumação dominical da minha casa teve como fundo musical o álbum do Rodrigo Ogi, As crônicas da cidade cinza, lançado ano passado e que foi das melhores criações que chegou até mim em 2011. Entre colocar a roupa no varal e limpar os móveis, minha cabeça deu um giro por Sampa, suas ruas e as dificuldades impostas pela mesma e que vi sendo impressas por outrxs artistas em suas obras. Imediatamente, meus pensamentos caíram no livro que mais bem quisto por mim nos últimos tempos, Ninguém é inocente em São Paulo, de Ferréz, lançado em 2006.
Ferréz escreve na “Bula” de seu livro Ninguém é inocente em São Paulo: “eternos amigos que continuam a me contar suas histórias, que sempre estão ao meu lado”. No mesmo tom, Rodrigo Ogi, citando Plínio Marcos, finaliza suas Crônicas da Cidade Cinza: “Eu conto histórias. Histórias que eu vi com esses olhos que a terra há de comer um dia, ou histórias que eu ouvi, no buxixo das curriolas”. Narrativas que têm como pano de fundo a SP sem amor para uns e que imprime dilemas cotidianos em seus habitantes. São muitas as personagens criadas pelos dois artistas: o motoboy que precisa ser safo para dar conta de seu trabalho tão arriscado, o tiozinho dono do bar que não agüenta mais os boyzinhos da faculdade falando em revolução, o PM que pode não voltar para sua casa depois de um dia de trabalho, o cachorrinho pensante que muda de um prédio luxuoso para morar na favela junto com seu novo dono escritor, o safo malandro que encara toda a gangue do Zé Medalha sem fugir da briga, o cara que paga um lanche no Habibs para dois meninos moradores de rua que não podiam nem comer e nem brincar no barco viking do estabelecimento, o cidadão que se vê como concorrente de si dentro em uma corrida de ratos cheio de carnês pra pagar e uma família pra sustentar, o grupo de rap que é entrevistado por um jornalista que tem pânico da periferia, o bandido que tem a premonição que naquela noite a missão seria fracassada e desiste da investida, o repositor de estoque do Pão de Açúcar humilhado por seu chefe (UFA!!! hehe) e muitas, muitas, muitas outras vozes que contemplam o universo paulista periférico e que agora adentram ao mundo literário como protagonistas. 
          Quando ouvi o disco do Ogi, as imagens velozes por ele ali reunidas me transpuseram prontamente para um cenário cinematográfico. As crônicas rap do Ogi e os contos de Ferréz dialogam visceralmente, cada uma em seu veículo, mas ambas com a tarefa de representar a multiplicidade de vidas engolidas pela imensidão cinzenta, mas que articulam suas possibilidades em meio ao caótico. Alessandro Buzo, em Hip Hop: dentro do movimento (2010), diz que sua produção integra o quinto elemento do hip hop, o conhecimento, este que reúne a produção de livros e filmes. As diversas manifestações desse movimento são cada vez mais simbióticas (por exemplo, a capa da mixtape de Ogi trás uma arte dos irmãos grafiteiros Os Gêmeos ) e são essas aproximações que vejo fortemente na literatura escrita e a cantada de Ferréz e Ogi.
        O primeiro conto de Ferréz “Fábrica de fazer vilão” nos arranca do comodismo logo de cara, trata-se de um episódio em que a violência policial é levada ao extremo e toda uma família negra é humilhada. O conto narrado em primeira pessoa tem como sujeito de enunciação um rapper acusado de ser vagabundo por parte dos policiais que invadem sua casa, ao que ele que responde: “sou trabalhador”.  Essa frase guarda consigo a dignidade de toda uma classe economicamente desfavorecida e atua como mote e ordem do dia das várias personagens das duas obras.  Nesse conto de Ferréz, os policiais ameaçam atirar em alguém daquela família, mas não efetivam o assassinato, a diversão deles ali era instaurar o medo. Já a faixa 10 do álbum de Ogi, Noite fria, narra uma cena na qual a personagem, não por acaso, é ouvinte do Sabotage e  sai com parceiros na madrugada em busca do “corre” da noite e acaba se deparando com  a polícia que o espanca e depois o mata. As repetidas histórias do cotidiano não só de São Paulo, mas de todo um país marcado pelo racismo da polícia que se esconde atrás dos “autos de resistência” são denunciados e problematizados pelos dois artistas.
O meio do caminho do rapaz que é trabalhador, mas se vê engessado pelo desemprego é tema da faixa “A vaga” (a melhor, na minha opinião). A narrativa conta o dia de um jovem que se vê diante de portas constantemente fechadas e que  enfrenta a vontade de fazer o jogo virar repentinamente, do jeito que der pra fazer isso ocorrer.  A personagem pensa em roubar o iphone da minazinha que moscou, mas sua consciência, com voz de Mano Brown, grita: “a vaga tá lá esperando você”.  O alerta, acerca da vaga indesejada, dado no diário do ex-detento Jocenir se contrapõe a tão almejada vaga de emprego que é o anseio presente no conto “No vaga”, de Ferréz.  As histórias de dois amigos desempregados e suas esperanças compõem o enredo desse conto.  Ambos reclamam da dificuldade de serem fichados em algum emprego, e diante do entrave, aceitar cair conscientemente na lorota das empreitas duvidosas é a saída vislumbrada pelos mesmos. Antes ser contratado investindo seu próprio e pouco dinheiro no negócio, do que não ser contrato de forma alguma. O narrador da música do Ogi encontra sua vaga de limpador de candelabro, os jovens de Ferréz topam vender três planos dentários para, então, serem contratados e assim, forjando resistências, esses jovens arquitetam vagas paras suas corajosas vidas encaradoras do armado concreto.
 A faixa que inicialmente mais me empolgou nas crônicas foi “Os tempos mudam”, parceria do Ogi com a Lurdez da Luz e que enuncia mudanças significativas no cenário social. Os dois cantam no refrão que os tempos já não são mais os mesmos e avisam: “se prepare, pois seu mundo também vai mudar”. Insistir em machismos, preconceitos, misoginias e afins é tolice, os tempos mudarão para todxs e essa já é a realidade de muitas mulheres (esperança e luta diária). No conto “O plano”, Ferréz faz uma breve descrição de uma mulher da periferia dizendo que a mesma está em pé no ônibus lotado, mais de meia noite, com cadernos no braço e conclui que achar como aquela em outro lugar é quase impossível. Somos múltiplas (nozes ♥ ) em muitos espaços e encontrar representações que fogem do lugar comum para a mulher periférica é só o ouro, não preciso nem dizer isso para não ser repetitiva. Ogi e Ferréz contemplam (ainda que isso precise aumentar quantitativamente) as vozes dissonantes femininas em suas narrativas, seja na representação de uma que atua como chefe de família e tem seu marido em casa cuidando dos afazeres domésticos (o que traz para a pauta do rap a troca dos papéis socialmente construídos para os gêneros), seja na guerreira solitária que enfrenta jornada tripla de trabalho fora, estudo e afazeres domésticos para dar conta de sua sobrevivência nas cidades cinzas.
            A narrativa que conta a trajetória de um retirante nordestino comunica diretamente com a vida de tantas famílias, vejo a minha ali também, trata-se da faixa “Eu tive um sonho” na qual Ogi canta ,com sotaque, a saga de um senhor que concretizou sonhos  em meio ao cinza. Essa narrativa se entrecruza com a do pai do próprio Ferréz que recebe sua carta no conto “Assunto de Família”: “Sabe, Pai, o senhor deve estar jogando dominó ou baralho em algum barzinho, num canto de algum gueto, é o seu jeito, né não?” (2006: 79). Repentes de vencedores.
            São muitas as conversas entre essas obras, aproximações, dialogismos , construções de novos cenários, vozes dissonantes, representações múltiplas de vidas são matérias desses artistas que imprimem em suas criações as angústias e também levezas de uma cidade intrigante. Tudo isso sedimentando, cada um em sua especialidade, uma forma de contar menos excludente e mais rica diante das diversas facetas das muitas verdades e mentiras também. Quem ainda não leu Ferréz ou ouviu Rodrigo Ogi que faça isso, deixo a dica, ninguém é inocente na cidade cinza.