segunda-feira, 19 de março de 2012

Dois anos sem Dina Di

      Há exatos dois anos, no dia 20 de março de 2010, o cenário musical brasileiro sofreu uma grande perda, Dina Di, cantora e líder do grupo de rap Visão de Rua, faleceu em decorrência de complicações surgidas após uma infecção hospitalar contraída no parto de sua segunda filha. A ainda muito jovem Dina Di, com 34 anos, abandonou o barco desse mundo falido e deixou o rap destronado: se foi sua Rainha. Inquietante uma frase dita por ela na abertura do álbum "O poder nas mãos", de 2008, (  ♥♥♥♥♥ ) antecipando e sintetizando o que hoje sentimos frente a sua precoce e evitável morte: "a negligência pode resultar em tragédia".
       Nos últimos tempos eu andei muito imersa na história de vida dessa grande mulher. Lembro de ter ouvido o mega sucesso dela "A noiva de Chuck" nos tempos do colégio e tudo, mas eu não estava, na época, atenta ao significado daquela voz e presença num meio em que se contava nos dedos o número de mulheres. Dina Di desbravou não só o espaço feminino nesse gênero, mas o próprio espaço do rap em nosso país. Se hoje vemos uma cena em franca expansão, cada vez mais profissionalizada e capaz de auto-gerir seus shows e vendas de CD's, é porque algumas figuras construíram a ferro e fogo o lastro da mesma, sem dúvidas Dina Di foi uma delas.
       O primeiro álbum do Visão de Rua, "Herança do vício", de 1998,  trouxe à tona a voz forte da paulista Viviane Lopes Matias, ali já chamada pelo nome que impõe respeito e admiração para quem foi, é ou será amante do rap brasileiro. Trabalhada nas calças largas, tênis, camisetas e se refugiando no vestuário masculino para "infiltrar-se" entre aqueles que detinham o cenário do rap, Dina Di arquitetou sua arte e presença. A inteligência e a estratégia dela me impressionam, foi uma mulher muito refinada que se fez respeitar combinando letras fortes, ousadia e fortaleza como elementos que fundamentaram sua trajetória artística.
Tem uma entrevista muito fera que ela deu para o site Mundo Black ( link: http://www.youtube.com/watch?v=c_MwTgDUzHI) na qual a cantora diz que o rap era um espaço sem preconceitos, que ela como mulher não se sentia desmerecida e que a ausência feminina no gênero era apenas uma questão de falta de mulheres que quisessem  encarar algo que ainda estava sendo construído. Por mais que eu faça outra leitura dos problemas enfrentados pelas mulheres em muitos espaços, não só no rap, acho que ela conseguiu desbravar o insólito e fez de sua trajetória, vida e arte um marco para esse movimento musical tão comprometido com as mudanças urgentes do mundo desigual.
      Saúdo e agradeço à Rainha do Rap que ressignificou uma vida cheia de feridas, sem deixar que as suas cicatrizes desfigurassem sua poesia, mas sim a fizesse única. A vida dessa artista foi mesmo uma daquelas que nos faz perguntar: como ela conseguiu superar? Ainda na adolescência teve diversas passagens pela FEBEM, o pai dela, um mestre de obras, morreu engasgado com um pedaço de carne em um buteco, sua mãe, uma camelô, foi assassinada violentamente em sua própria casa com requintes de crueldade inacreditáveis e como ela conseguiu seguir, gente? Esse é o questionamento que me faço constantemente ao lembrar de Dina Di. A resposta ela mesma tratou de nos fornecer na já citada abertura do álbum do Visão de Rua: "Quando a gente sofre uma grande perda é como se ficasse um buraco na nossa existência  /  Por outro lado se eu não tivesse passado o que eu passei, perdido o que eu perdi, eu não teria profundidade como mulher, valeu a experiência". Sinceramente, eu acho pouco chamá-la de guerreira, Dina Di foi mais que isso. Imagina estar imersa na tristeza e conseguir transfigurar isso e ser madura o bastante para perceber as modificações internas que a tormenta fornece?!
Uma de suas últimas fotos com  Aline, sua filha.
 A Rainha do Rap cantou a esperança em muitas músicas como em "O poder nas mãos", cantou o amor na linda "É nóis", gritou para quem pudesse ouvir o problema da violência doméstica em "Dormindo com o agressor", cantou toda sua fortaleza em "Guerreira de fé", cantou sua fé em muitos trechos de suas canções como a "O filho pródigo", falou para a juventude acerca da violência urbana em "As coisas mudam", alertou  às jovens acerca das dificuldades enfrentadas por quem encara uma gravidez muito nova em "Marcas da adolescência", também falou dos entraves do mundo para a criação dos filhos na música "Meu filho, minhas regras",  relatou o cotidiano do sistema carcerário feminino em "Confidências de uma presidiária", enfim, Dina Di esteve na linha de frente do rap e da vida.
       Eis uma personalidade que me instiga e inspira, admirar sua arte e a forma com que esteve neste mundo é resultado dos ecos que ela construiu em suas músicas e posicionamentos. Dina Di, Guerreira de Fé, Rainha do Rap, sua voz se foi, mas os ecos dela em sua poesia são eternos. Só podia terminar esse textinho com uma frase dita pelo Helião, também no álbum "O poder nas mãos": "Ela é o máximo, luta, se esforça, tenta melhorar, tem sonhos, fica alegre ou triste por causa do amor, se não estivesse aqui, algo estaria faltando no rap, que o objetivo seja ação: Dina Di" ♥♥♥♥♥.

* Em muitos vídeos no Youtube, podemos revistar a voz e força das canções de Dina Di, há um em especial que nos apresenta outra faceta dessa artista, nele temos o registro da "face MPB" da cantora, vale conferir essa que foi uma de suas últimas gravações: http://www.youtube.com/watch?v=E7_BgvJHkjI&feature=youtu.be

quarta-feira, 7 de março de 2012

Por um 8 de março Rosa Parks ao som de Nega Gizza


Sou mulher, mas não sou tão frágil ou tão delicada
Meu microfone é minha arma
Minha palavra é como uma espada
Nega Gizza

Dessa vez eu não serei tardia (hehehe) e vim escrever algo sobre o 8 de março a tempo (milagre!).  O último post foi pesadão pra mim, trazendo várias reflexões sobre assuntos velados e que, por isso mesmo são muito caros a nós mulheres. Bom, pra minha lembrança do Dia Internacional da Mulher não ficar com o ranço da violência aqui no blogueiratardia, resolvi escrever um tanto sobre nossa força para encarar perrengues e as resistências cotidianas que forjamos para sermos possíveis nesse mundo falho.
O Dia Internacional da Mulher marca um episódio histórico de resistência na luta pela equidade de direitos entre os gêneros. No dia 8 de março de 1857, trabalhadoras de uma fábrica de tecidos em Nova York foram assassinadas quando se manifestavam a favor de melhores condições de trabalho, as trancaram e atearam fogo na fábrica em que se encontravam e isso resultou na morte de cerca de 130 tecelãs. Esse acontecimento é de extrema relevância para a luta de todas as mulheres, porém, aqui me reservo no direito de lançar meu olhar sobre uma batalha coletiva, mas muito íntima, travada pela mulherada preta que tece sutilmente suas ferramentas possíveis de guerra.
Esse texto é uma reverência à mulher negra que desencadeou um processo importantíssimo na luta pela igualdade dos Direitos Civis nos EUA: Rosa Parks ♥♥♥♥♥ #MáximoInfinitoRespeito! Não fiquei pensando nem cinco segundos quando me fiz a pergunta sobre que mulher preta cabulosa havia desencadeado desdobramentos tão ou mais reverberantes quanto os ocorridos após as mortes naquela fábrica. Constantemente, eu meio que separo as lutas nos meus textos néh??!!! Meu intuito com isso não é segregar cegamente, ser radical ou coisa do tipo, só considero importante pautar as diferenças que os  locais de fala guardam para si e o quanto colocarmos tudo dentro de uma única caixinha pode ser prejudicial. Exemplo mais repetido de todos, mas muito elucidativo: uma feminista branca que luta por igualdade de salários entre homens e mulheres pode, sem dor alguma, explorar uma trabalhadora doméstica negra dentro de sua casa e nem se coçar diante do ato abusivo. Feita minha breve defesa da especificidade da nossa saga feminina preta, parto logo pro anacrônico-encontro imaginado para o Dia Internacional da Mulher: “Larga o Bicho”,da Nega Gizza e da Yeda Hills e seu diálogo com Parks e seu feito. Diz aí se eu não ganho daquele personagem de desenho animado, o Bob Generic, nas minhas looongas viagens?! (hahahahahaha)
É lógico que eu resgataria um rap super querido pra falar do nosso dia, gente! A música “Larga o bicho”, da Nega Gizza e da Yeda Hills é um canto de luta e afirmação para todas nós, a mulherada preta. E para quem não conhece (acho difícil), a norte-americana Rosa Parks é um importantíssimo ícone de luta para os movimentos negros de todo o mundo. No dia 1 de dezembro de 1955, a costureira negra Rosa Parks voltava de um dia de trabalho e recusou-se a ceder seu lugar no ônibus em que se encontrava para que um branco se sentasse. Rosa Parks recebeu apoio do pastor (ainda desconhecido) Martin Luther King Jr. que em sua pregação pediu que a população negra apoiasse a costureira, a partir daí iniciou-se o “Boicote aos ônibus de Montgomery” que pautava o fim da segregação racial nos EUA e que teve duração de 381 dias. O eu-lírico da canção da Gizza diz: “Não sou do tipo que diz não, querendo dizer sim / Nem do tipo falem mal, mas falem de mim (...) Sou nega na pele e na mente / Isso me faz valente / Pois sei que sou descendente do guerreiro zumbi”. Parks não veio com meias palavras, meias atitudes e colocou pra jogo sua força contra a opressão com o pouco que tinha diante do poder do homem branco referendado por um Estado poderoso, estavam ali no ônibus: seu corpo, sua voz, sua escolha, seu cansaço, um tanto de medo, acredito, e os ecos de toda uma linhagem de #MulheresPretasGuerreiras.
Organizar-se diante das opressões é uma eficaz forma de diminuí-las, porém tais atos podem ocorrer de maneiras diferentes como, por exemplo, resguardando as sutilezas das armas que se têm, o cientista político James Scott chama esse movimento de resistência cotidiana. Tal conceito é um dos que eu mais gosto e que diz muito dos movimentos de resistências negras, tapão na cara de quem diz que historicamente aceitamos tudo de forma apática. Nossa Rosa Parks resistiu de forma tão “simples” naquele dia, mas de maneira tão contundente que até hoje a reverenciamos e levamos o ensinamento de sua coragem de geração em geração. Numa entrevista em 1992 a própria Parks explicou: "Meus pés estavam doendo, e eu não sei bem a causa pela qual me recusei a levantar. Mas creio que a verdadeira razão foi que eu senti que tinha o direito de ser tratada de forma igual a qualquer outro passageiro. Nós já havíamos suportado aquele tipo de tratamento durante muito tempo". Parks não era uma feminista acadêmica ou uma protegida que não podia sair de casa sem o pai ou o marido, era uma trabalhadora preta que queria voltar para sua casa depois de um dia de trabalho, pra mim esse é o limiar que diferencia as lutas de mulheres com origens e anseios tão diferentes.
Sua soberana força troca ideia com os versos de Gizza e Hills: “Mulher preta de espírito guerreiro / Quem é, é, sem caô, sem despero / Não sou mulata, não sou mula, sou canhão/ Sou granada que explode a solidão”. Rosa Parks estraçalhou a solidão de quem cedia seus lugares nos ônibus por medo ou por sobrevivência e convocou milhares de pessoas para mover a engrenagem do receio e tentar transformar a base: #IHaveADream!
            As guerreiras do cotidiano, herdeiras e irmãs de Rosa Parks, estão espalhadas por muitos espaços (AINDA BEM) e certamente levam consigo o entendimento explicitado nos versos de Nega Gizza: “Trago na pele a força e minha juventude/ Trago na massa encefálica a negritude/ Trago a virtude que confunde o imbecil /Piscou o olho fuuu fumaça subiu”. Nada da apatia de quem espera acontecer, nada de esconde-esconde, nada de temer o homem que se julga soberano: essa canção é injeção de força na veia!  Tenho total conhecimento de que extremar o subjetivo é dose, referendar o estereótipo de que mulher preta é forte e agüenta tudo já nos ferrou muitas vezes! Não quero fazer isso! Apenas quero registrar, no dia de hoje, que nossa coragem move boicotes, transformações e molda o barro-argila das vidas e isso é muito particular.
            “Larga o bicho” segue para seu fechamento com os versos: “A vida é uma escada /Um degrau após o outro / Rumo ao topo/ A linha ao topo/ A linha de chegada/ Sou mulher,mas não sou tão frágil ou tão delicada/ Meu microfone é a minha arma/ Minha palavra é como uma espada” #TeMETE!! Delicadeza e fragilidade são outros estereótipos construídos para que as mulheres permaneçam no crivo dos mandamentos machistas, fugir disso é estar armada, é ser Rosa Parks não ficando calada, é galgar degraus, ultrapassar linhas de chegada e construir topos só nossos.
            Numa data criada não apenas para darmos os “parabéns” para as mulheres, mas sim para refletirmos acerca dos fossos ainda grandes que diferenciam as mesmas dos homens em diversos aspectos, é importantíssimo pensarmos nas diferenças também alimentadas dentro da grande categoria mulher. Os privilégios raciais, muitas vezes “cordiais”, ainda reservam lugares de prestígio nos ônibus imaginários que podem ser as universidades, o mercado de trabalho, a política etc. Finalizo meu texto marcando a necessidade de refletirmos sobre essas fissuras internas da categoria mulher, fera demais comemorar as vitórias, mas ficar só no confete é ceder lugar pro opressor sentar no baú e ainda curtir a paisagem da janelinha. 

8 de março Rosa Parks ao som de Nega Gizza pra vocês!




segunda-feira, 5 de março de 2012

Rosas e Atitude para Ponciá


Acontecimentos violentos carnavalescos, uma música ouvida no celular a espera de um voo atrasado (Rosas, do Atitude Feminina ) e a lembrança de uma personagem querida (Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo ♥♥♥♥♥) foram a mistura que eu venho maturando desde o fim da festa da carne e que só desemboco aqui agora (tardia, oi?!), às vésperas do 8 de março, mas isso tem seu segredo de sentido, tenho certeza.

Há mais de uma semana que eu comecei a escrever esse textito, começava e parava, começava e parava, assim como o ciclo vivido por mulheres que tentam se desvencilhar da violência: começam e param diversas vezes, o medo fala alto e o recuo surge como a saída mais viável. Difícil lidar com a violência sempre e sempre, seja na #RealLife, seja nas representações artísticas e isso fez com que essa escrita não fluísse bem como as outras, enfim.
Muitas imagens e acontecimentos de agressões contra mulheres vieram me “visitar” nesse carnaval, "vi" de perto o que a gente não quer ver nem a quilômetros de distância. E aí, né?! O que fazer diante dessa merda toda é uma angústia que parece sem fim, uma estupidez que o discurso teórico-feminista ainda não me “ensinou” a enfrentar de forma eficaz. Vamos combinar também que eu nem tento mais esse tipo de resposta, pois para mulheres que não se encaixam no perfil padrão-clássico- feminista, os caminhos jamais seriam iguais: ok. Diante disso,  com o auxílio das mãos de verdadeiras sistas pretas, apostei minhas fichas na solidariedade e o refrão #SozinhaCêNumGuenta me salvou da doideira que é tentar montar o quebra cabeças do mundo opressor.
Isso rolou há uns quatro anos atrás, quando algumas “amigas pretas poder”  (Candaces ♥ ) resolveram montar um grupo para ler outras pretas poder elevadas a milésima potência (!!!) e as personagens dos livros que ali conheci se tornaram minhas terapeutas, gente! (hehehehehee). Na verdade, a maioria delas me deixava era loka dentro da roupa com as dores de suas vivências até eu entender que apagá-las de certas narrativas é esconder o indesejado em baixo do tapete.
Ainda bem que as mulheres pretas costumam pegar as dores, as pedras do caminho e acabam construindo castelos daqueles! Bota fé?! É isso que as meninas do grupo de rap aqui do DF “Atitude Feminina” ♥ realizam em sua trajetória de forma muito especial. E nessa de buscar nas trocas internas, na solidariedade e cumplicidade os motes-vida é que fiquei viajando (literalmente, voando de volta de um carnaval meio yin-yang) num encontro entre a música dessas garotas e a amada protagonista do romance Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo, escritora afrobrasileira contemporânea daquelas que encaram os problemas e tenta nos fazer potentes diante daquilo que nos emudece.


Ponciá ecoa a voz de tantas jovens negras que saíram do meio rural e foram para a cidade trabalhar como empregadas domésticas em busca de sonhos (alguém aí tem uma mãe, avó, tia, prima ou amiga com essa história?). O problema é que a cidade tem um sonho próprio no qual as Ponciás só cabem beirando as margens e lotando os puxadinhos. A trajetória de Ponciá Vicêncio não se difere das histórias não-ficcionais conhecidas por nós, as explorações dissecadoras da mão-de-obra, as péssimas condições de moradia, a educação e a saúde figurando como artigos de luxo e a necessidade de sustentar-se nessa corda bamba com as marcas deixadas por um marido violento são alguns dos fatores que levaram Ponciá a viver num mundo silencioso a parte. Tenho um palpite: se um encontro entre as sistas de Sobradinho não arrancasse nossa amiga Ponciá de vez da dor-apatia, ao menos a faria sentir-se acolhida: #SozinhaNinguémGuenta. 
A parte foda das escrivivências de Evaristo e do Atitude Feminina é a parte foda da vida: encarar as verdades de frente. Na maioria das vezes a gente quer ouvir o amor, a risada, dançar e esquecer a parte complicada de existir quando buscamos nos deleitar perante diversas manifestações artísticas, mas também podemos ir até as mesmas no intuito de diluir nela boa parte dessa parte foda. A música “Rosas”, das meninas do Atitude, traz para a cena do rap a escamoteada violência contra as mulheres e logo no começo denuncia: “A cada quinze segundos uma mulher é agredida no Brasil / E a realidade não é nem um pouco cor-de-rosa / A cada ano dois milhões de mulheres são espancadas por maridos ou namorados”. Essa estratégia de informar através da música tem retorno de compreensão muito rápido, considero incalculável o impacto dessa letra na vida de quem só vê amarras, é uma conversa com amigas verdadeiras e (conhecimento de causa) nada é mais revelador do que essa sincera troca.
Assim como a protagonista de “Rosas”, Ponciá Vicêncio ficou encantada por seu companheiro, a paixão veio de encontro a ela ali no meio da grande cidade: o pedreiro e a empregada doméstica resolveram construir uma vida juntxs. Conceição Evaristo foi delicada e muito responsável na construção das trajetórias de suas personagens, inclusive na representação do companheiro de Ponciá revelando ao(a) leitor(a) o fosso que escondia a violência que o mesmo destinava a ela. Bom, nesse texto eu não estou muito solidária (posso?!) com as pesadas cargas que arquitetam a subjetividade do homem negro de forma a fazê-lo reproduzir no espaço privado a violência que o assola no espaço público: um problema de cada vez. =O
O relato de atitude das meninas de São Sebastião prossegue com a narrativa para o momento em que as coisas mudam entre o casal: “Mas alegria de pobre dura pouco, diz o ditado/Ele ficou diferente agressivo, irritado/ Chegava tarde da rua aquele bafo de pinga/ Batom na camisa e cheiro de rapariga”. O mesmo ocorreu com o relacionamento de Ponciá e a protagonista passou a “conviver” com murros, olhos roxos, hematomas e o silêncio foi sendo firmado entre ela e seu agressor: não mais palavras onde antes cumplicidade. O senso comum, principalmente nas gerações passadas, imprimiu às mulheres que o comportamento adequado das mesmas diante do casamento é o da submissão e o lema “casamento é para toda a vida” forjou uma casa perfeita para o patriarcado promover seus mandos e desmandos.
O desfecho da situação protagonizada pela personagem do Atitude não poderia ser pior: “Começou a quebrar tudo loucamente lombrado / Eu falei que estava grávida ele não me escutou / Me bateu novamente mais dessa vez não parou / Vários socos na barriga, lá se vai a esperança / O sangue escorre no chão, perdi a minha criança/ Aquele monstro que um dia prometeu me amar / Parecia incontrolável eu não pude evitar / Talvez se eu tivesse o denunciado / Talvez se eu tivesse   o deixado de lado”. Alerta mais substancial que esse eu tenho pouca imaginação para formular. Tudo muito pesado, intenso, doloroso pra quem ouve, mas com incentivos de liberdade pra quem vive. Ponciá Vicêncio no meio de seu silêncio interrompido apenas pelas socadas do companheiro poderia viver a interrupção do mesmo através dessas Rosas a ela ofertada.
Esse texto é mais um devaneio de quem imagina como seria voltar ao barro origem (desejo reiterado por Ponciá durante toda a obra) fundador de nosotras sistas pretas, talvez isso modificasse tantas coisas! A mudança é motor das vidas neh?! Então que nossa força o gire muito e faça com que o nó na garganta que insiste em nos acompanhar se desfaça o quanto antes, todo dia e sempre. Um 8 de março de barro origem, rosas e atitude para vocês, companheiras! ;)