quinta-feira, 17 de maio de 2012

Rap brasileiro, rap estadunidense e a busca pelo status de "arte"


O livro “Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular” (1998), de Richard Shusterman, rende uma boa leitura para quem curte, escuta, se interessa por arte popular, especialmente por rap. Shusterman é um filósofo pragmatista que busca construir uma legitimação estética e teórica para a arte popular na obra em questão. Para isso, o autor mergulha na análise do interessante cenário que o hip hop vivenciou em sua formação nos guetos nova-iorquinos do final da década de 70 ao começo dos anos 90, quando houve o lançamento da obra.
O livro é acadêmico, inegável o fato, mas Shusterman empreende um tom bem didático e tranquilo de ler nos dois primeiros capítulos da obra que discutem a arte enquanto teoria oscilante entre a experiência e a prática. O terceiro capítulo intitulado “Forma e Funk: o desafio estético da arte popular” traz uma discussão sobre os esquemas de valoração antagônicos empreendidos na classificação do que é bom gosto e o que não é, e como isso é usado como impedimento para analisar as artes populares a partir de critérios estéticos tradicionais.  O quarto capítulo “A arte do rap” é o que julgo ser mais relevante na obra em questão, nele Shusterman, através da análise de uma letra de rap do grupo Stetsasonic, demonstra o porquê do rap ser um gênero “capaz” de satisfazer os critérios impostos pela tradição estética. O quinto capítulo versa sobre a forma com que arquitetamos o nosso viver ética e esteticamente no pós-modernismo (é um capítulo muito do chatoooo).
Já que eu tô no meu blog, posso fazer uma resenha do jeito que eu quero! (hehehe). Eu aguardei ansiosamente a discussão desse livro na matéria que tô fazendo da Pós, tinha lido algumas partes soltas dele, incluindo a introdução, e salvo alguns deslizes, percebo discussões muito interessantes desenvolvidas no livro do Shusterman. De uma forma geral e bem por cima, o intuito do Shusterman é discutir a arte como parte integrante da práxis cotidiana das pessoas desde sempre, para isso ele lança mão da teoria estética pragmatista que define arte como experiência, mesmo sendo essa uma definição complicada para os moldes filosóficos tradicionais.  O autor faz várias ressalvas quanto a isso, retomando a discussão feita por Adorno que descreditou o reconhecimento pragmatista da funcionalidade artística, Shusterman o rebateu afirmando o exato contrário disso, para ele a arte não pode ser separada da vida e da funcionalidade, mas fez isso diante de muitas ressalvas também. Fazendo uma mea culpa, Shusterman indica um possível “meliorismo” do pragmatismo em relação a arte popular: reconhecer suas falhas estéticas e seus abusos políticos, assim como seu potencial estético e sua grande capacidade de comunicação para uma práxis progressista” (1998: 11).
O caminho teórico do autor cansa o leitor lá pelas tantas, ele anuncia reiteradamente aonde quer chegar, seu objetivo é repetido diversas vezes: construir uma legitimação teórica para as artes populares que poderá ajudar na mudança de algumas atitudes tradicionais em relação a mesma para que isso, de fato, mude os fatos sociais reais. A análise da letra “Talkin’ all that jazz” do Stetsasonic encabeça toda a discussão que sustenta o argumento do autor, mas creio que tentar a todo custo provar essa “apreciação” teórica-estética do rap está na contramão do discurso e do posicionamento social que o eu-lírico desse gênero enuncia.
O quarto capítulo é o que de fato eu recomendo a leitura para quem curte rap, o autor faz uma breve reconstituição histórica das raízes culturais do mesmo para explicar o fundamento das deslegitimações que o gênero recebeu desde seu nascimento: “As raízes culturais do rap e seus primeiros adeptos pertencem à classe baixa da sociedade negra norte-americana; seu orgulho negro militante e sua temática da experiência do gueto representam uma ameaça para o status quo complacente da sociedade” (1998: 143). O autor discute acerca da originalidade existente na técnica do sampling denominando-a de “apropriação reciclada”, a seleção e combinação de partes de faixas já gravadas foi e é uma prática condenada por quem a considera mera cópia, sem autenticidade, e não percebe o trabalho criativo e de pesquisa feito pelo DJ, a discussão que Shusterman faz dessa técnica do rap é bastante interessante, ainda mais pra minha pessoa aqui que de técnicas musicais não entende nada. O autor também fala de como as colagens de sons do cotidiano, as referências a programas de rádio, de TV, outros artistas, enfim, como todo o universo ao redor do rap naquele dado momento é constituidor fundamental de seus conteúdos. O cotidiano adentra ao rap de maneira certeira, esse é um dos pontos que a tradição estética crê torná-lo datado e, por isso, sem valor artístico, no entanto, esse dia-a-dia, que transpõe os problemas locais das periferias que são o palco do rap, permite um diálogo universal entre os guetos do mundo e isso é demais! O diálogo de temas universais como a opressão e a injustiça permitido pelo rap entre as periferias é uma verdadeira afronta à universalidade referendada pela estética tradicional. O rap destitui da arte o caráter místico do “inalcançável”, nele os problemas são da ordem do dia e a criação que os levará para as rádios e cd’s tem que comunicar com o presente, aqui e já, sem mais delongas, sem blá blá blá's.
O capítulo sobre o rap abriu meu horizonte de baby diante da fundação desse gênero, as notas de rodapé são uma verdadeira enciclopédia do hip hop, o cara traz referências de músicas, discos e vídeos de artistas como Ice T, BDP, Kool Moe Dee, Grandmaster Flash, Afrika Bambaataa, Stetsasonic, NWA, Public Enemy e muitos outros. O autor fala sobre como esses artistas lidam com o conflito anunciado várias vezes em suas músicas: exaltação do luxo ao mesmo tempo em que condenam a idealização da busca do consumo desenfreado que não condiz com as origens do emissor primeiro de sua arte, o gueto. Bom, o livro é do começo da década de 90 época em que isso ainda era uma discussão em ascensão no rap, atualmente ostentar a riqueza surreal virou um clichê para vários artistas do rap estadunidense e isso é o que sempre me enojou um tanto no rap gringo. Quem vê de longe as cenas dos vídeos que a MTV divulga, fica meio desnorteado com tanta sexualização do corpo feminino, com as letras que abordam o sexo constantemente, sei lá, tudo de longe parece estar tão bem resolvido na periferia dos EUA. Lógico que essa é uma análise de quem tá vendo o macro vendido pela mídia, os discursos são múltiplos sim e conheço vários exemplos disso, mas o que o mercado se apropria e vende aos litros é o prazer fake e isso eu não curto. Nesse ponto eu acredito que o rap brasileiro ganha e está há anos luz dessa picuinha aí, somos periferia do mundo e isso não permite que nossos artistas percam de vista a tensão centro X periferia que é o mote insurgente do rap desde sua origem.
A letra analisada por Shusterman para referendar sua existência enquanto arte, "Talkin all that jazz", do Stetsasonic, traz no eu-lírico a auto-afirmação performática de sua arte como uma estratégia para alcançar status. A letra se inicia respondendo a acusação de que o sampling não é autêntico, o eu-lírico reivindica para o rap seu status artístico esclarecendo para o ouvinte como o mesmo é feito, além de acusar o crítico de ser um limitado ignorante do fazer do rap. A letra segue fazendo uma exaltação do caráter renovador da tradição musical afro-americana realizada pelo rap e finaliza mostrando o orgulho que essa ligação com a tradição fornece ao gênero. Durante toda a música um tom de ameaça é reiterado contra os críticos que desconhecem e tentam enquadrar o rap a partir de um entendimento inadequado para o mesmo, mas os compositores também tiveram o cuidado de selar a paz entre os ouvintes em geral, que não são esse corpo crítico poderoso do rap, dizendo aos mesmos que eles podem conviver pacificamente com o rap, pois a reivindicação de legitimidade artística que ele empreende não é para que o rap se torne patrão, mas para que ele possa se expressar publicamente em espaços midiáticos tão amplos quanto os destinados a outros gêneros.
         Fiquei um tempão pensando sobre uma letra de rap brasileira que empreendesse uma discussão sobre sua legimitidade artística perante a estética tradicional. Não consegui lembrar nenhuma, pode ser falta de conhecimento mesmo, mas acho que isso ocorre talvez por conta da resposta que o rap brasileiro dá ao que o rap gringo perdeu, a meu ver. A discussão centro-periferia daqui não prevê legitimação do centro, não é para ser rico sem ser mais nada para o espaço de onde se veio, não é para dizer que é arte frente a outros gêneros, creio que o rap brasileiro promove o diálogo local mais universal de todos, sem tomar para si a falha bandeira do universalismo. Ele olha pra dentro, mostra para os de fora o que suas violências causam naquele espaço da precariedade, mostra para os de dentro o que pode ser feito para dar conta dos problemas ali presentes, fala da injustiça, da opressão, da raiva, do amor, do futebol, da mãe e de todo o universo da periferia que, aqui, ainda está muito distante de possuir os bens que pertencentes ao centro. Não coloco na conta do rap a resolução de problemas estatais, sou idealista e romântica só nas paqueras (hehehehe), mas percebo seu movimento mediador entre os pares como uma estratégia de sobrevivência dentro e fora do universo que o gestou. O consumo da classe pobre mudou bastante no Brasil nos últimos dez anos, é um pulo anacrônico dizer que possamos estar vivendo o momento da música do Stetsasonic hoje, afinal estamos falando da maior potência econômica do mundo, mas esse poder aquisitivo vem surgindo no horizonte das periferias brasileiras aos poucos e pode chegar o momento em que essa legitimação perante “os outros” seja central para nosso rap. Por enquanto, acho que estamos no lucro, pedir legitimação pode ser visto como uma importante disputa de poder, isso é até parte do meu trabalho enquanto intelectual, mas colocar pra jogo partindo do fazer, da prática de uma arte que está ali por si só é mais condizente com o fazer que o rap propõe ao mundo: faça você mesmo.

Para ouvir "Talkin' all that jazz" -->  http://www.youtube.com/watch?v=9_NOcYismhU&feature=related







domingo, 13 de maio de 2012

Desacato é o 13 de maio: Emicida, o "Dedo na ferida" e os capitães do mato




A forjada abolição da escravatura no Brasil, ocorrida em 1888, já não é referendada por nós há muito tempo. Todxs sabemos dos problemas existentes em “comemorarmos” uma data que ainda está engasgada na garganta de quem foi escamoteadx para os lugares mais remotos, negligenciados e esquecidos por quem promovia o projeto de branqueamento e higienização da nação ambiciosa por esquecer que houve escravidão no Brasil, assim como esquecer que certa vez existiram pretxs nela. 

“Dedicado às vítimas do Moinho, Pinheirinho, Cracolândia, Rio dos Macacos, Alcântara e todas as quebradas devastadas pela ganância” assim se inicia a música “Dedo na ferida” que ocasionou a prisão o rapper Emicida, hoje, 13 de maio, após um show em Belo Horizonte-MG. A música é banhada por uma indigesta indignação diante do abuso que o aparelho coercitivo do Estado destina a uma dada população, de uma dada cor, que vive nos arredores de um dado poder e que, aos olhos desse, deveria ter desaparecido em um dado 1888. 

O rapper segue em sua canção cheia de scratchs, com a voz icônica de Mano Brown, nos lembrando que a fúria negra ressucitará sempre e indaga: “Auschwitz ou gueto? índio ou preto?”. O tratamento da polícia diante da população negra, que segue arquitetando o precário mais de um século depois do pseudo “presente da princesinha”, é envolto por uma violência que nos faz questionar se tudo ficou como memória amarga dos tempos da colônia. O genocídio da população negra brasileira é latente, as instruções de perseguição ao “elemento cor padrão” já figuraram (ainda figuram?) em cartilhas da Polícia Militar, barracos de centenas de famílias são derrubados e sangue é derramado visando o bem estar de um único empresário, e o desacato é do artista que cometeu o "crime" de não ter a cor certa para portar a legítima defesa que é a liberdade poética?

“Contra porcos em castelo / O povo tem que cobrar com os parabelo /Porque a justiça deles, só vai em cima de quem usa chinelo /E é vítima, agressão de farda é legítima” eis aí a pedrada de Emicida, eis aí a voz dxs silenciadxs encontrando seus algozes tête-à-tête. Esse é produto que o discurso do rap carrega consigo, a liberdade RAPoética reverbera a fúria que jamais deixou de protagonizar nossas resistências cotidianas que vão desde pegar o ônibus lotado para o trabalho, até a organização de uma manifestação para a defesa das comunidades que os senhores da casa grande insistem em usurpar. 

Não gosto nem um pouco de vislumbrar na minha frente um cenário com tantos resquícios de um passado espúrio, mas o fato é que as analogias são inevitáveis ao passo que o anacronismo fica sem justificativa de existir. Não é a-histórico dizer que o racismo perdura no Brasil se o que vemos é uma sociedade em que alguns figurões, donos de terras, mandam derrubar casas de gente negra e pobre. Não é a-histórico dizer que o racismo perdura no Brasil se o que vemos é um país que endereça “balas não perdidas” à população negra, que mata nossos jovens e se esconde atrás dos “autos de defesa” cheios de sangue. Não é a-histórico dizer que o racismo perdura no Brasil se o que vemos é uma polícia ignorante e despreparada que apenas atualiza o papel dos capitães do mato de outrora. Não é a-histórico dizer que o racismo perdura no Brasil se o que vemos é um artista tendo sua liberdade poética, expressiva e criativa sendo cerceada por um aparelho que deveria estar atento a questões urgentes, embora muito bem legitimadas e escamoteadas por brancos colarinhos. 

13 de maio de 2012, nada mais do que 124 anos após a abolição, nos vemos perante um extremado abuso autoritário que costuma encontrar a arte apenas nos períodos de governos golpistas com sabor de chumbo. Como felizmente esse não é nosso atual caso, é fácil perceber que se o agente enunciador do discurso for da cor receptora das brutalidades do mundo e que se houver o “agravante” dessa mensagem ser veiculada por um gênero altamente estigmatizado como o rap, a cadeia surge como “saída” e simulacro de todo um passado escravagista pautado na exploração racial. Hoje foi um daqueles dias em que nós, descendentes de ex-escravizadxs, mais uma vez amargamos na boca a raiva de uma data pesada, revivemos o ódio forjado pelos poderosos e alastrado pelos capitães do mato (pardos irmãos de cor) nas trilhas desse país purulento de feridas, estávamos ali na figura de Emicida, uma voz dissonante questionadora do vil poder, desacatadxs pelo 13 de maio, sendo todxs dedos na ferida.

* Escurecimentos sobre o ocorrido no site do Emicida: http://www.emicida.com/
**Para ouvir “Dedo na ferida”: http://www.youtube.com/watch?v=QdvYAjQYdIs&feature=youtu.be