segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A dita classe C e as possíveis mudanças no rap


Está para surgir novidade que cause tanto debate quanto a tal “ascensão da classe C”. A preocupação em avaliar o impacto do consumo da “nova classe” é discutida com alvoroço e frisson em diversos setores. Recentemente, Brasília foi palco de um evento que refletiu acerca desse advento econômico brasileiro com mais densidade do que vem ocorrendo. O projeto RAPensando (que reuniu shows de artistas do rap do DF e outros Estados durante todo o mês de julho) encarou a responsabilidade de promover um debate acerca da nova classe média e as possíveis mudanças que isso ocasionou no rap. Qual seria a relação do avanço econômico com avanço do rap em termos de público e mídia?
Os artistas Marechal, Higo Melo (Ataque Beliz), Dino Black (ex – Morte Cerebral) e MC Ahoto, sob a mediação da jornalista Yalê Gontijo, protagonizaram a conversa acerca do impacto dessas novas dinâmicas no meio em que atuam. Esse texto não é uma reportagem do que ali foi dito, já passou o tempo de ser uma notícia, mas sim, uma breve reflexão acerca das ideias que ali surgiram.
Segundo dados da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República*, está na classe média quem vive em uma família de renda mensal per capita entre R$ 291 e R$ 1.109. Então, se o somatório dos salários e rendimentos de quatro pessoas de uma família superar R$ 1.164 por mês, todos serão considerados de classe média. O crescimento econômico brasileiro e as políticas públicas de distribuição de renda são alguns dos responsáveis para que um número cada vez maior de pessoas pudesse lançar mão de diversas ferramentas, produtos e serviços outrora nada acessíveis. Pensando no nosso cotidiano, é evidente que a possibilidade de comprarmos computadores, celulares, termos acesso à internet ou mesmo termos os dois reais para pagarmos a hora da lan house confere novas formas de lidarmos, inclusive, com a arte. No entanto, a fala dos artistas aqui citados alerta para o fato de que essa “facilidade” pode escamotear outros interesses. A discussão da mesa foi norteada pela comum compreensão de que a categoria “classe C” é configurada mais como um discurso dissolutivo empreendido pelo Estado e pela mídia coorporativa que visa o desmantelamento de algumas posturas combativas, do que como um evento que desencadeie mudanças efetivas nas classes sociais.
O rap está acostumado a ter como matéria os acontecimentos políticos, sociais e econômicos historicamente maquiados pela máquina estatal. Se deparar com percepção de artistas que colocam para jogo a estagnação existente nessa tramada mobilidade é algo inesperado para os que forjam as ilusões de bem estar para a classe que carregou “Brasis” nas costas. Os(as) artistas do rap que não compraram o discurso estatal-midiático da explosão do consumo da classe pobre estão na contramão da ideologia, essa que tem como objetivo fazer o(a) dominado(a) acreditar e agir como se a exploração fosse natural ou até mesmo “glamourosa”, vide a jornada de gliter que inventaram para as empregadas domésticas das novelas.  Todo esse confete para cima da “classe C” me instiga e me transformou em um ser que pisa em ovos diariamente. Já olhei com mais otimismo para esse evento, não quero, absolutamente, negar os avanços, temos mais jovens de classes populares nas universidades hoje, porém não é bom perder de vista que as exclusões são apenas atualizadas nessa sociedade. Há vinte anos, ter um diploma superior garantia um salário que sustentava a família “clássica” com tranquilidade, atualmente esse mesmo diploma sustenta o eterno aperto do cheque especial sempre no vermelho, o carnê das Casas Bahia, os infinitos juros dos cartões de créditos e daí, o patrão está lucrando menos com isso?
A parte boa dessa instrumentalização da classe C como a educação, o acesso à comunicação e aumento da autoestima dos jovens da periferia precisa ser trabalhada para que não caiamos no fosso arquitetado pela ideologia: a improdutiva sensação de “bem estar social”. O rap e toda uma gama de agentes que atuam sem o braço do Estado como as mídias alternativas e as ONG’s (algumas delas), estão formando boa parte da juventude herdeira de anos de exploração de toda uma classe e isso fez com que o poder começasse a forjar mecanismos que freassem a sagacidade reflexiva que essa combinação pode causar. Daí o burburinho e a cansativa repetição de que o rap está mudado e expressando uma variedade temática inédita. Será mesmo que o rap mudou seus temas ou o poder estatal-midiático percebeu nele um potencial agente de reflexões e resolveu criar uma caixinha oportuna de “futilidades” para enquadrar sua produção?
MC Marechal, quando questionado na mesa acerca dessa “mudança temática” do rap, respondeu que sempre existiu variedade temática no gênero, mas o que ocorre hoje é a tentativa (já tão repetida) de apropriação de algumas manifestações genuinamente populares por parte das elites. Assim fica fácil manipular: ou o rap tem de ser sempre guetizado ou diluído para ser consumido por um público maior e comercializado nos meios de comunicação que estão a serviço da ideologia.
O lema punk setentista do “faça você mesmo” é importante para a configuração do momento que estamos vivenciando. A manipulação de ferramentas sofisticadas e equipamentos refinados deixou a precariedade no passado, o rap hoje é produzido com alta qualidade técnica e a agência comunicativa de seus produtores(as) expandiu seu consumo de forma considerável. O otimismo temático que a ideologia tenta referendar para o rap hoje é um fosso perigoso. Manipular a falsa impressão de que seus temas estão diversificados pode ser mais uma forma de promover o “bem estar social” e facilitar sua “apropriação” por parte das elites, como bem colocou Marechal.
Esse debate tem mil pormenores, construir pensamentos ao passo que as coisas estão acontecendo é estar disposto a re(formular) ideias constantemente. O rap é um gênero disposto a desconstruir discursos, prisões e violências a partir de matéria do cotidiano e isso o obriga a empreender uma autorreflexão sobre sua cena sempre. A discussão empreendida no projeto RAPensando deixou o alerta para que estejamos atentos(as) à ilusão que querem nos vender. Ser empregada doméstica não é tão glamuroso como diz a novela das sete, a “modernização” das cidades que receberão a Copa do Mundo e as Olimpíadas não é tão benéfica quanto parece (essa classe C “consumista” está indo viver onde agora?)**. Diluir o discurso do rap em litros de água com açúcar e no “avanço da classe C” pode ser o desenho de uma alegria vaporosa tão falsamente ilustrativa quanto a das Empreguetes.


*  Fonte “O que define a classe média”, por Moreira Franco e Ricardo Paes: http://www.sae.gov.br/site/?p=12489
**  Texto bacana sobre esse problema aqui: http://rioonwatch.org.br/?p=3464

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Desde que o samba é samba


Na cadência bonita de um samba recriado pela ficção e enredado pela História, temos a composição da matéria de Desde que o samba é samba (2012), novo livro do Paulo Lins, uma obra pra ser ouvida e lida entre a poltrona e o youtube, interação blaster!

Paulo Lins que desde Cidade de Deus (1997) não havia mais publicado, retoma sua obra marcada pela etnografia, agora publicando pela Editora Planeta. Lançado no fim de maio, Desde que o samba é samba revive para sempre, nas páginas de um romance, os versos primeiros de um ritmo-poesia criado pelxs descendentes de ex-escravizadxs.

Entre personagens ficcionais e históricos, Lins recria o cenário de um Rio de Janeiro marcado pela política higienista que norteou aqueles anos de 1920. Naquele tempo, a liberdade para negros e negras era cerceada pela aplicação da “lei da vadiagem”, naquele tempo a dita “malandragem” de alguns guardava apenas a resistência de quem era obrigadx a estar na margem e ser capoeira para sobreviver.  

Ismael Silva é a personagem que sintetiza o tom efusivo, alegre, mas também recheado pela poética melancólica que preencheu os versos iniciais do nosso samba. Sua história é uma das que compuseram as muitas narrativas formadas no burburinho da zona central do Rio de Janeiro, o Estácio, o berço do samba. Paulo Lins convida x leitxr a ser um flanêur do início do século XX, não apenas para contemplar a cidade, mas para sentir o que os morros, os inacessos e os grandes encontros no centro representaram para a interação cultural das pessoas ali viventes.

Brancura (Sílvio Fernandes) é a personagem principal do romance, o escolhido por Lins para protagonizar parte da ficção que amalgama seu romance à História. O triângulo amoroso vivido por Brancura, pelo português Sodré e pela prostituta Valdirene prende x leitxr que é rapidamente capturado pelas traições e os sentimentos densos que unem essas personagens. A relação dos três é costurada no pano de fundo de um Rio de Janeiro cantado pela efervescência do samba.

É na tessitura desse triângulo de amores que a dívida de Lins com x leitxr se faz. Assim como ocorreu em alguns momentos de Cidade de Deus, há lacunas entre as narrativas ficcionais e o fundo histórico da obra que ora pesam, forçam situações e didatismos, ora se desprendem e deixam os fios do contar soltos. Outro incômodo no texto de Lins, para mim, é a mão naturalista que sobrecarrega a construção dele. Me desagrada profundamente preterir a agência da escolha para algumas personagens, o corpo ainda grita nas linhas de Paulo Lins e isso me soa atemporal e até irreal.
A solução, tenho certeza, ficará na mão de um Fernando Meirelles da vida. Desde que o samba é samba é uma obra que ficaria muito bem se transposta para as telas, é para ouvirmos “Me faz carinhos”, do Ismael Silva, embalando o atribulado amor de Valdirene e Brancura. Trata-se de uma narrativa cinematográfica, a cada página eu imaginava as ruas, a casa da Tia Almeida (a Tia Ciata!!), os instrumentos recém-criados, os terreiros de Candomblé, as casas de Umbanda nascidas juntas com o samba e suas escolas, enfim um mundo inteiro que o cinema teria grande prazer em recriar. (Ajuda ler o livro e assistir ao filme “Noel, o poeta da vila”, justamente por conta da ambientação das ruas e das entradas fonográficas).

Por mais que eu tenha apontado alguns ranços no enredo de Lins, recomendo esse livro fortemente para quem eu puder. Ler uma obra que faz nossa mente manipular cenas recriadas por uma memória musical vinda do quintal da nossa casa é muito precioso! Paulo Lins me ganhou com esse segundo romance, reconheço há muito a importância dele que abriu portas para que escritores como o Ferréz <3 despontassem no campo literário brasileiro, mas ainda não o tinha como um querido das letras. Agora isso acontece e aguardo ansiosa por mais obras, ah, e por mais desapego às cenas um tanto naturalistas!

Desde que o samba é samba retrata um momento divisor de águas para a subjetividade criativa de um povo explorado por séculos e que ali, em meados dos anos de 1920, começou a articular o movimento musical que o fortaleceu em luta e estima. Lins finaliza seu livro com esse tom: “Até o vento fazia a curva em causa própria, assim como as pessoas que sentiam aquela energia vinda da criação artística para superar a vida em que o povo negro da pós-escravidão colocou a cultura como arma para conquistar dignidade com duas batidas fortes no surdo feito deixa para o solista sair improvisando (...) Tiveram a ideia de fazer parte da sociedade em forma de canto, mas mesmo assim foram espancados pela polícia, sofreram desdém, foram presos, tiveram a dor do preconceito, mas saíram sambando em busca de uma avenida para fazer dela uma passarela com o reforço do tamborim, do reco-reco, da cuíca e do surdo” (LINS, 2012, p. 294).

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Rap brasileiro, rap estadunidense e a busca pelo status de "arte"


O livro “Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular” (1998), de Richard Shusterman, rende uma boa leitura para quem curte, escuta, se interessa por arte popular, especialmente por rap. Shusterman é um filósofo pragmatista que busca construir uma legitimação estética e teórica para a arte popular na obra em questão. Para isso, o autor mergulha na análise do interessante cenário que o hip hop vivenciou em sua formação nos guetos nova-iorquinos do final da década de 70 ao começo dos anos 90, quando houve o lançamento da obra.
O livro é acadêmico, inegável o fato, mas Shusterman empreende um tom bem didático e tranquilo de ler nos dois primeiros capítulos da obra que discutem a arte enquanto teoria oscilante entre a experiência e a prática. O terceiro capítulo intitulado “Forma e Funk: o desafio estético da arte popular” traz uma discussão sobre os esquemas de valoração antagônicos empreendidos na classificação do que é bom gosto e o que não é, e como isso é usado como impedimento para analisar as artes populares a partir de critérios estéticos tradicionais.  O quarto capítulo “A arte do rap” é o que julgo ser mais relevante na obra em questão, nele Shusterman, através da análise de uma letra de rap do grupo Stetsasonic, demonstra o porquê do rap ser um gênero “capaz” de satisfazer os critérios impostos pela tradição estética. O quinto capítulo versa sobre a forma com que arquitetamos o nosso viver ética e esteticamente no pós-modernismo (é um capítulo muito do chatoooo).
Já que eu tô no meu blog, posso fazer uma resenha do jeito que eu quero! (hehehe). Eu aguardei ansiosamente a discussão desse livro na matéria que tô fazendo da Pós, tinha lido algumas partes soltas dele, incluindo a introdução, e salvo alguns deslizes, percebo discussões muito interessantes desenvolvidas no livro do Shusterman. De uma forma geral e bem por cima, o intuito do Shusterman é discutir a arte como parte integrante da práxis cotidiana das pessoas desde sempre, para isso ele lança mão da teoria estética pragmatista que define arte como experiência, mesmo sendo essa uma definição complicada para os moldes filosóficos tradicionais.  O autor faz várias ressalvas quanto a isso, retomando a discussão feita por Adorno que descreditou o reconhecimento pragmatista da funcionalidade artística, Shusterman o rebateu afirmando o exato contrário disso, para ele a arte não pode ser separada da vida e da funcionalidade, mas fez isso diante de muitas ressalvas também. Fazendo uma mea culpa, Shusterman indica um possível “meliorismo” do pragmatismo em relação a arte popular: reconhecer suas falhas estéticas e seus abusos políticos, assim como seu potencial estético e sua grande capacidade de comunicação para uma práxis progressista” (1998: 11).
O caminho teórico do autor cansa o leitor lá pelas tantas, ele anuncia reiteradamente aonde quer chegar, seu objetivo é repetido diversas vezes: construir uma legitimação teórica para as artes populares que poderá ajudar na mudança de algumas atitudes tradicionais em relação a mesma para que isso, de fato, mude os fatos sociais reais. A análise da letra “Talkin’ all that jazz” do Stetsasonic encabeça toda a discussão que sustenta o argumento do autor, mas creio que tentar a todo custo provar essa “apreciação” teórica-estética do rap está na contramão do discurso e do posicionamento social que o eu-lírico desse gênero enuncia.
O quarto capítulo é o que de fato eu recomendo a leitura para quem curte rap, o autor faz uma breve reconstituição histórica das raízes culturais do mesmo para explicar o fundamento das deslegitimações que o gênero recebeu desde seu nascimento: “As raízes culturais do rap e seus primeiros adeptos pertencem à classe baixa da sociedade negra norte-americana; seu orgulho negro militante e sua temática da experiência do gueto representam uma ameaça para o status quo complacente da sociedade” (1998: 143). O autor discute acerca da originalidade existente na técnica do sampling denominando-a de “apropriação reciclada”, a seleção e combinação de partes de faixas já gravadas foi e é uma prática condenada por quem a considera mera cópia, sem autenticidade, e não percebe o trabalho criativo e de pesquisa feito pelo DJ, a discussão que Shusterman faz dessa técnica do rap é bastante interessante, ainda mais pra minha pessoa aqui que de técnicas musicais não entende nada. O autor também fala de como as colagens de sons do cotidiano, as referências a programas de rádio, de TV, outros artistas, enfim, como todo o universo ao redor do rap naquele dado momento é constituidor fundamental de seus conteúdos. O cotidiano adentra ao rap de maneira certeira, esse é um dos pontos que a tradição estética crê torná-lo datado e, por isso, sem valor artístico, no entanto, esse dia-a-dia, que transpõe os problemas locais das periferias que são o palco do rap, permite um diálogo universal entre os guetos do mundo e isso é demais! O diálogo de temas universais como a opressão e a injustiça permitido pelo rap entre as periferias é uma verdadeira afronta à universalidade referendada pela estética tradicional. O rap destitui da arte o caráter místico do “inalcançável”, nele os problemas são da ordem do dia e a criação que os levará para as rádios e cd’s tem que comunicar com o presente, aqui e já, sem mais delongas, sem blá blá blá's.
O capítulo sobre o rap abriu meu horizonte de baby diante da fundação desse gênero, as notas de rodapé são uma verdadeira enciclopédia do hip hop, o cara traz referências de músicas, discos e vídeos de artistas como Ice T, BDP, Kool Moe Dee, Grandmaster Flash, Afrika Bambaataa, Stetsasonic, NWA, Public Enemy e muitos outros. O autor fala sobre como esses artistas lidam com o conflito anunciado várias vezes em suas músicas: exaltação do luxo ao mesmo tempo em que condenam a idealização da busca do consumo desenfreado que não condiz com as origens do emissor primeiro de sua arte, o gueto. Bom, o livro é do começo da década de 90 época em que isso ainda era uma discussão em ascensão no rap, atualmente ostentar a riqueza surreal virou um clichê para vários artistas do rap estadunidense e isso é o que sempre me enojou um tanto no rap gringo. Quem vê de longe as cenas dos vídeos que a MTV divulga, fica meio desnorteado com tanta sexualização do corpo feminino, com as letras que abordam o sexo constantemente, sei lá, tudo de longe parece estar tão bem resolvido na periferia dos EUA. Lógico que essa é uma análise de quem tá vendo o macro vendido pela mídia, os discursos são múltiplos sim e conheço vários exemplos disso, mas o que o mercado se apropria e vende aos litros é o prazer fake e isso eu não curto. Nesse ponto eu acredito que o rap brasileiro ganha e está há anos luz dessa picuinha aí, somos periferia do mundo e isso não permite que nossos artistas percam de vista a tensão centro X periferia que é o mote insurgente do rap desde sua origem.
A letra analisada por Shusterman para referendar sua existência enquanto arte, "Talkin all that jazz", do Stetsasonic, traz no eu-lírico a auto-afirmação performática de sua arte como uma estratégia para alcançar status. A letra se inicia respondendo a acusação de que o sampling não é autêntico, o eu-lírico reivindica para o rap seu status artístico esclarecendo para o ouvinte como o mesmo é feito, além de acusar o crítico de ser um limitado ignorante do fazer do rap. A letra segue fazendo uma exaltação do caráter renovador da tradição musical afro-americana realizada pelo rap e finaliza mostrando o orgulho que essa ligação com a tradição fornece ao gênero. Durante toda a música um tom de ameaça é reiterado contra os críticos que desconhecem e tentam enquadrar o rap a partir de um entendimento inadequado para o mesmo, mas os compositores também tiveram o cuidado de selar a paz entre os ouvintes em geral, que não são esse corpo crítico poderoso do rap, dizendo aos mesmos que eles podem conviver pacificamente com o rap, pois a reivindicação de legitimidade artística que ele empreende não é para que o rap se torne patrão, mas para que ele possa se expressar publicamente em espaços midiáticos tão amplos quanto os destinados a outros gêneros.
         Fiquei um tempão pensando sobre uma letra de rap brasileira que empreendesse uma discussão sobre sua legimitidade artística perante a estética tradicional. Não consegui lembrar nenhuma, pode ser falta de conhecimento mesmo, mas acho que isso ocorre talvez por conta da resposta que o rap brasileiro dá ao que o rap gringo perdeu, a meu ver. A discussão centro-periferia daqui não prevê legitimação do centro, não é para ser rico sem ser mais nada para o espaço de onde se veio, não é para dizer que é arte frente a outros gêneros, creio que o rap brasileiro promove o diálogo local mais universal de todos, sem tomar para si a falha bandeira do universalismo. Ele olha pra dentro, mostra para os de fora o que suas violências causam naquele espaço da precariedade, mostra para os de dentro o que pode ser feito para dar conta dos problemas ali presentes, fala da injustiça, da opressão, da raiva, do amor, do futebol, da mãe e de todo o universo da periferia que, aqui, ainda está muito distante de possuir os bens que pertencentes ao centro. Não coloco na conta do rap a resolução de problemas estatais, sou idealista e romântica só nas paqueras (hehehehe), mas percebo seu movimento mediador entre os pares como uma estratégia de sobrevivência dentro e fora do universo que o gestou. O consumo da classe pobre mudou bastante no Brasil nos últimos dez anos, é um pulo anacrônico dizer que possamos estar vivendo o momento da música do Stetsasonic hoje, afinal estamos falando da maior potência econômica do mundo, mas esse poder aquisitivo vem surgindo no horizonte das periferias brasileiras aos poucos e pode chegar o momento em que essa legitimação perante “os outros” seja central para nosso rap. Por enquanto, acho que estamos no lucro, pedir legitimação pode ser visto como uma importante disputa de poder, isso é até parte do meu trabalho enquanto intelectual, mas colocar pra jogo partindo do fazer, da prática de uma arte que está ali por si só é mais condizente com o fazer que o rap propõe ao mundo: faça você mesmo.

Para ouvir "Talkin' all that jazz" -->  http://www.youtube.com/watch?v=9_NOcYismhU&feature=related







domingo, 13 de maio de 2012

Desacato é o 13 de maio: Emicida, o "Dedo na ferida" e os capitães do mato




A forjada abolição da escravatura no Brasil, ocorrida em 1888, já não é referendada por nós há muito tempo. Todxs sabemos dos problemas existentes em “comemorarmos” uma data que ainda está engasgada na garganta de quem foi escamoteadx para os lugares mais remotos, negligenciados e esquecidos por quem promovia o projeto de branqueamento e higienização da nação ambiciosa por esquecer que houve escravidão no Brasil, assim como esquecer que certa vez existiram pretxs nela. 

“Dedicado às vítimas do Moinho, Pinheirinho, Cracolândia, Rio dos Macacos, Alcântara e todas as quebradas devastadas pela ganância” assim se inicia a música “Dedo na ferida” que ocasionou a prisão o rapper Emicida, hoje, 13 de maio, após um show em Belo Horizonte-MG. A música é banhada por uma indigesta indignação diante do abuso que o aparelho coercitivo do Estado destina a uma dada população, de uma dada cor, que vive nos arredores de um dado poder e que, aos olhos desse, deveria ter desaparecido em um dado 1888. 

O rapper segue em sua canção cheia de scratchs, com a voz icônica de Mano Brown, nos lembrando que a fúria negra ressucitará sempre e indaga: “Auschwitz ou gueto? índio ou preto?”. O tratamento da polícia diante da população negra, que segue arquitetando o precário mais de um século depois do pseudo “presente da princesinha”, é envolto por uma violência que nos faz questionar se tudo ficou como memória amarga dos tempos da colônia. O genocídio da população negra brasileira é latente, as instruções de perseguição ao “elemento cor padrão” já figuraram (ainda figuram?) em cartilhas da Polícia Militar, barracos de centenas de famílias são derrubados e sangue é derramado visando o bem estar de um único empresário, e o desacato é do artista que cometeu o "crime" de não ter a cor certa para portar a legítima defesa que é a liberdade poética?

“Contra porcos em castelo / O povo tem que cobrar com os parabelo /Porque a justiça deles, só vai em cima de quem usa chinelo /E é vítima, agressão de farda é legítima” eis aí a pedrada de Emicida, eis aí a voz dxs silenciadxs encontrando seus algozes tête-à-tête. Esse é produto que o discurso do rap carrega consigo, a liberdade RAPoética reverbera a fúria que jamais deixou de protagonizar nossas resistências cotidianas que vão desde pegar o ônibus lotado para o trabalho, até a organização de uma manifestação para a defesa das comunidades que os senhores da casa grande insistem em usurpar. 

Não gosto nem um pouco de vislumbrar na minha frente um cenário com tantos resquícios de um passado espúrio, mas o fato é que as analogias são inevitáveis ao passo que o anacronismo fica sem justificativa de existir. Não é a-histórico dizer que o racismo perdura no Brasil se o que vemos é uma sociedade em que alguns figurões, donos de terras, mandam derrubar casas de gente negra e pobre. Não é a-histórico dizer que o racismo perdura no Brasil se o que vemos é um país que endereça “balas não perdidas” à população negra, que mata nossos jovens e se esconde atrás dos “autos de defesa” cheios de sangue. Não é a-histórico dizer que o racismo perdura no Brasil se o que vemos é uma polícia ignorante e despreparada que apenas atualiza o papel dos capitães do mato de outrora. Não é a-histórico dizer que o racismo perdura no Brasil se o que vemos é um artista tendo sua liberdade poética, expressiva e criativa sendo cerceada por um aparelho que deveria estar atento a questões urgentes, embora muito bem legitimadas e escamoteadas por brancos colarinhos. 

13 de maio de 2012, nada mais do que 124 anos após a abolição, nos vemos perante um extremado abuso autoritário que costuma encontrar a arte apenas nos períodos de governos golpistas com sabor de chumbo. Como felizmente esse não é nosso atual caso, é fácil perceber que se o agente enunciador do discurso for da cor receptora das brutalidades do mundo e que se houver o “agravante” dessa mensagem ser veiculada por um gênero altamente estigmatizado como o rap, a cadeia surge como “saída” e simulacro de todo um passado escravagista pautado na exploração racial. Hoje foi um daqueles dias em que nós, descendentes de ex-escravizadxs, mais uma vez amargamos na boca a raiva de uma data pesada, revivemos o ódio forjado pelos poderosos e alastrado pelos capitães do mato (pardos irmãos de cor) nas trilhas desse país purulento de feridas, estávamos ali na figura de Emicida, uma voz dissonante questionadora do vil poder, desacatadxs pelo 13 de maio, sendo todxs dedos na ferida.

* Escurecimentos sobre o ocorrido no site do Emicida: http://www.emicida.com/
**Para ouvir “Dedo na ferida”: http://www.youtube.com/watch?v=QdvYAjQYdIs&feature=youtu.be

domingo, 22 de abril de 2012

E para cantar a Literatura Marginal...


Na primeira vez em que eu ouvi a música #Poucas Palavras, do Grupo Inquérito, faixa do álbum "Mudança", fiquei agoniada pra escrever algo sobre sua construção de um fundo musical muito contundente, belo e fidedigno para a Literatura Marginal. Trata-se de uma música que me impulsiona consideravelmente, me arrepiou com sua ode a essa faceta da expressão artística que me faz acreditar em melhores faces para o mundo e isso me estimula a seguir. Tenho muito orgulho de estudar a literatura que estudo, de admirar xs escritorxs que admiro e de saber que essa produção periférica fissura muitos dogmas intocáveis. Isso é possível sim, acreditem, xs pessimistas que me desculpem, mas botar fé na MUDANÇA é fundamental. 
                Aqui no tardia eu já falei um pouco da obra #PoucasPalavras, do Renan Inquérito, um livro que bombardeia as certezas do cânone literário de uma forma desafiadora! “Se a história é nossa deixa que #nóisescreve” (frase enunciada na música também intitulada #PoucasPalavras) essa é a marcação de uma autonomia que nos foi surrupiada sistematicamente ao longo da nossa história, a narrativa de quem sempre esteve à margem. Já disse Foucault que o discurso é uma luta pelo poder, nessa perspectiva a instrumentalização para que pudéssemos alcançá-lo seria a nós impedida a todo custo. O que arranca minha admiração e me motiva é o discurso fronteiriço forjado nos arredores desse mundo de impedimentos, a Literatura Marginal é um exemplo cativo desse empreendimento.
                O livro organizado pelo escritor Ferréz, Literatura Marginal: talentos da escrita periférica, tem como texto de abertura “Terrorismo literário” que explicita o intuito dessa arte que ecoa discursos periféricos no reservado espaço literário: “Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão, a regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto” (2005:9). Estaríamos diante de uma procura incessante pela legitimação de sua escrita? Não mesmo, esse não é o objetivo de quem escreve o que quer e por sua própria conta, como disse o líder sul africano Steve Biko. Protagonizar, falar de si para seus comuns, falar de si para xs outrxs, produzir os moldes e não apenas usar aquele pensado para corpos alheios, não ser mediadx, cerceadx ou estigmatizadx, ser arte preocupada com conteúdo SIM e criando a cada dia uma FORMA que precisa de uma nova forma para ser compreendida são algumas das muitas  características da produção literária marginal.
                O grupo Inquérito está em consonância com a responsabilidade que Biko nos deixou como herança de luta e vida na obra “Escrevo o que quero”. A música #PoucasPalavras se inicia com a provocação: “Por várias vezes já tentei falar / Têm poucos para ouvir / Muitos pra escutar / Os desanimados / O rap tá embaçado / Nóis ‘somo’ movimento / Mas estamos parado / Fazer o que né? / Os dois lados da moeda / Uns tão envolvidos, outros tão de para-quedas / É favelado querendo ser boy / boy querendo ser favela / Mas no final, quem corre mesmo por ela?!” A problemática das motivações, anseios e construções que o eu-lírico almeja para o rap é a apresentação dessa canção, a polêmica estabelecida logo no início é uma manifestação de descontentamento com alguns descasos e apropriações feitas dentro de um movimento fundado na contestação dos problemas de quem pouco tem. O grupo Inquérito provoca e frisa a importância de se re(fazer) e se re(criar) através de expressões singulares dentro de uma linguagem que carrega em si identidade e endereço. Ferréz também marca essa ideia no “Terrorismo literário” na continuidade da frase acima citada: “A própria linguagem margeando e não os da margem, marginalizando e não os marginalizados, rocha na areia do capitalismo” (2205: 9). 
                Após dar lançar a discussão que promovem em sua música, a letra segue e enuncia: "Vou dar um salve / pra quem não sabe / O rap tem base / Bagulho não é fase / Hoje a favela é moda nas tela / Cidade de Deus, Tropa de Elite,Novela / Nois grava disco,lança livro,faiz até sarau / Nois lava alma e depois põe pra secar no varal / Toca nos carros, toca nas rádios / Enche a auto-estima / Tipo torcida no estádio”. Há um movimento em franca expansão que protagoniza e reivindica a fala de si, promove seus próprios eventos e não pede “permissão” para construir sua expressão. Mais do que fazer uma ode vazia ao modismo intitulado “estética da violência” que invadiu o mercado editorial brasileiro no final dos anos 90, essa música marca temporalmente um crescimento gritante vivido pelas periferias atualmente que veio acompanhado da autonomia, do protagonismo e reivindicação | reinvenção de criação. Nesse mesmo sentido, escreveu Ferréz no texto aqui já citado: “Somos mais, somos aquele que faz a cultura, falem que não somos marginais, nos tirem o pouco que sobrou, até o nome, já não escolhemos o sobrenome, deixamos para os donos da casa-grande escolher por nós, deixamos eles marcarem nossas peles, por que teríamos espaço para um movimento literário? Sabe duma coisa, o mais louco é que não precisamos de sua legitimação, porque não batemos na porta para alguém abrir, nós arrombamos a porta e entramos” (2005: 10).
                O terreno da literatura contemporânea é muito escorregadio, a todo o momento nos deparamos com as armadilhas da valoração arquitetonicamente construídas pelos guardiões do portão que Ferréz anunciou arrombar. O sociólogo francês Pierre Bourdieu, em “As regras da arte”, aborda as relações e a composição do campo literário para perceber sua influência direta ao valor dado às obras. É inquestionável o fato de que o trabalho de editorxs, críticxs, professorxs, pesquisadorxs etc, atua na “eleição” das obras mais “relevantes”, “importantes” e “clássicos” entre outras alcunhas. Nem é preciso dizer que a produção periférica que hoje arromba portões e destrói muros, nem sempre é referenciada, aceita e estudada como literatura por grande parte dos agentes do campo literário.
                Mas para esse proposital esquecimento e silenciamento respondemos estratégica e frontalmente: “a arte que liberta não pode vir da mesma mão que escraviza” essa frase do poeta Sérgio Vaz, presente no texto “Manifesto da Antropofagia Periférica” está para além de um diálogo com a música do Inquérito, as duas selam o comprometimento com uma arte em que nós tenhamos nossas subjetividades levadas a sério, sem caricatos ou histórias únicas, hora de colocarmos tudo em nossos livros, fazendo eco atitude de uma das precursoras dessa expressividade, Carolina de Jesus. Fecho meu texto com a frase dos meninos do Inquérito: "vida longa à Literatura Marginal"!

Link para ouvir #PoucasPalavras, Grupo Inquérito: http://www.youtube.com/watch?v=m7jjltFXAaI


domingo, 15 de abril de 2012

Ferréz, Sérgio Vaz e Gog na I Bienal Brasil do Livro e da Leitura

Quem esteve hoje pela manhã na I Bienal Brasil do Livro e da Leitura, realizada em Brasília, teve a oportunidade de discutir os desdobramentos da Literatura Marginal com dois dos seus mais destacados representantes, os escritores Ferréz e Sérgio Vaz.  O cantor e poeta Gog mediou a mesa que tinha como tema a “Expressão literária e estética da periferia”, o debate se deu em uma quente tenda do caríssimo evento que traz para a cidade expoentes da literatura mundial como Alice Walker e Wole Soyinka. 
As interfaces entre o rap e a Literatura Marginal são simbióticas, como bem frisou Sérgio Vaz em dado momento de sua fala. Então, não é de causar estranhamento o fato de que parte do público fiel ali presente fosse composto por pessoas que viraram a madrugada no show do grupo de rap Racionais MC’s, inclusive os palestrantes e o mediador da mesa. Nada como um dia após o outro dia de agito para leitorxs e agentes da Literatura Marginal (hehehe).
Bocejos e cansaços à parte, Gog apresentou os participantes ao público e iniciou as discussões da manhã falando acerca do compromisso que o Hip Hop tem de promover mudanças na postura e na formação dxs jovens (seu maior público) oriundxs dos espaços da escassez.  O cantor considera que a literatura é uma das frentes do movimento que articula muito bem tal “função”.
Ferréz fez uma contundente fala no que diz respeito ao compromisso formativo que ele abraçou como sendo um dos objetivos de seu fazer artístico. O escritor disse que sua missão ali era “convencer leitorxs a serem viciadxs em literatura”. Alguns podem julgar antiquado o “tom messiânico” dado a tal arte, mas convenhamos que é muito fácil estabelecer entendimentos como esse quando se vem do espaço do conforto. Quem sempre esteve nas melhores escolas, com acesso aos mais diversos livros desde a mais remota infância e que precisa de mais de duas mãos para contar o número de viagens que fez ao exterior acha “chic” lidar com a literatura se preocupando apenas sua FORMA em detrimento de seu CONTEÚDO. Essa relação é a raiz de todo o preconceito destinado à Literatura Marginal que não teria sentido algum longe de sua motivação fundamentada na construção de conteúdos que desdobrem algumas transformações, nem que isso seja apenas um sonho para leitorxs e escritorxs.
Partindo da motivação de ser agente modificador de seu lugar, mesmo que em escalas homeopáticas, Ferréz falou da sua atuação como palestrante e oficineiro em escolas públicas e presídios de São Paulo. O mesmo disse entender a literatura como algo vivo, essa percepção leva o escritor a disseminá-la nos espaços onde a vida se forma e também se transforma. O autor leva de Dostoievski, a Plínio Marcos e Fernando Pessoa, dentre muitos outrxs, para reviverem sua arte a partir do momento em que são lidos dentro dos espaços que são esquecidos pelo Estado.  Ferréz é um escritor, roteirista, cantor e empresário exemplo do compromisso verbalizado por Mano Brown, na noite anterior, em ocasião do show dos Racionais MC’s na cidade: “Maloqueiro, cuide da sua esquina” #FicaAdica.
Sérgio Vaz, o escritor mais sagaz também nos domínios do “espaço das revoluções com jujubas”, o twitter, começou sua fala lendo o  texto “Literatura nas ruas”, presente em seu livro “Literatura, pão e poesia” (2011), que aborda a experiência do mesmo com o sarau da Cooperifa, realizado há onze anos, em São Paulo. O poeta, em sua fala, contemplou os problemas e as vitórias enfrentados por quem encara a missão de propagar a Literatura Marginal. Para ele, a Literatura Marginal não salva vidas como fazem as ONG’s, mas forma cidadãos e cidadãs agentes de transformações cotidianas no mundo. Não poderia ter sido mais pertinente a intervenção do aluno da rede pública e poeta Fernando, que recitou seu poema para a plateia e nos atentou sobre a sistemática vitimização que o olhar outro emprega à periferia.  O eu-lírico do poema de Fernando nega todas as interpretações derrotistas dadas à favela e anuncia seu fortalecimento identitário no último verso: “apenas um guerreiro seguindo na missão”. Alguém ainda duvida da agência da arte marginal nas vidas marginalizadas?
A arte precisa se fazer compreensível e a Literatura Marginal (re)inventa a linguagem para dar conta desse objetivo. Sérgio Vaz frisou esse aspecto singular da expressão marginal explicando sua dinâmica de tomada do conhecimento e transformação do mesmo no já citado “Literatura, pão e poesia”, a “antropofagia periférica” assim se faz.
A plateia foi bastante ativa no debate, muitas perguntas foram feitas e houve uma rodada de autógrafos e sessão de fotos com Ferréz, Gog e Sérgio Vaz ao final da mesa. Impossível conseguir transpôr aqui no tardia tudo o que pude absorver desta manhã tão significativa. Vida longa à Literatura Marginal que promoveu um debate dinâmico, enriquecedor e ainda nos agraciou com declamações memoráveis dos, além de tudo, divertidíssimos Sérgio Vaz e Ferréz. Finalizo retomando a frase de Renan Inquérito citada por Vaz em sua contribuição: “Se a história é nossa, deixa que nóis escreve”.

*Fica minha crítica à disfuncional, quente e abafada estrutura montada com recursos que chegam a 9 milhões de reais do dinheiro público para essa bienal. Tanta grana no meio e em um dia de evento já me deparei com um  mal planejamento estrutural combinados com uma equipe de recursos humanos um tanto falha e uma insuportável  montagem de arena política de deputados e secretários de governo nos atos solenes, aff!
**Troféu joinha para duas pessoas sem noção da produção que chamaram o Sérgio Vaz de Sérgio Sá duas vezes!! =S
***Chamar o twitter carinhosamente de “espaço das revoluções com jujubas” é coisa da querida Ludimila Moreira Menezes! ;P
****Todas as fotos são da Laetícia Jensen Eble querida. ;)

segunda-feira, 19 de março de 2012

Dois anos sem Dina Di

      Há exatos dois anos, no dia 20 de março de 2010, o cenário musical brasileiro sofreu uma grande perda, Dina Di, cantora e líder do grupo de rap Visão de Rua, faleceu em decorrência de complicações surgidas após uma infecção hospitalar contraída no parto de sua segunda filha. A ainda muito jovem Dina Di, com 34 anos, abandonou o barco desse mundo falido e deixou o rap destronado: se foi sua Rainha. Inquietante uma frase dita por ela na abertura do álbum "O poder nas mãos", de 2008, (  ♥♥♥♥♥ ) antecipando e sintetizando o que hoje sentimos frente a sua precoce e evitável morte: "a negligência pode resultar em tragédia".
       Nos últimos tempos eu andei muito imersa na história de vida dessa grande mulher. Lembro de ter ouvido o mega sucesso dela "A noiva de Chuck" nos tempos do colégio e tudo, mas eu não estava, na época, atenta ao significado daquela voz e presença num meio em que se contava nos dedos o número de mulheres. Dina Di desbravou não só o espaço feminino nesse gênero, mas o próprio espaço do rap em nosso país. Se hoje vemos uma cena em franca expansão, cada vez mais profissionalizada e capaz de auto-gerir seus shows e vendas de CD's, é porque algumas figuras construíram a ferro e fogo o lastro da mesma, sem dúvidas Dina Di foi uma delas.
       O primeiro álbum do Visão de Rua, "Herança do vício", de 1998,  trouxe à tona a voz forte da paulista Viviane Lopes Matias, ali já chamada pelo nome que impõe respeito e admiração para quem foi, é ou será amante do rap brasileiro. Trabalhada nas calças largas, tênis, camisetas e se refugiando no vestuário masculino para "infiltrar-se" entre aqueles que detinham o cenário do rap, Dina Di arquitetou sua arte e presença. A inteligência e a estratégia dela me impressionam, foi uma mulher muito refinada que se fez respeitar combinando letras fortes, ousadia e fortaleza como elementos que fundamentaram sua trajetória artística.
Tem uma entrevista muito fera que ela deu para o site Mundo Black ( link: http://www.youtube.com/watch?v=c_MwTgDUzHI) na qual a cantora diz que o rap era um espaço sem preconceitos, que ela como mulher não se sentia desmerecida e que a ausência feminina no gênero era apenas uma questão de falta de mulheres que quisessem  encarar algo que ainda estava sendo construído. Por mais que eu faça outra leitura dos problemas enfrentados pelas mulheres em muitos espaços, não só no rap, acho que ela conseguiu desbravar o insólito e fez de sua trajetória, vida e arte um marco para esse movimento musical tão comprometido com as mudanças urgentes do mundo desigual.
      Saúdo e agradeço à Rainha do Rap que ressignificou uma vida cheia de feridas, sem deixar que as suas cicatrizes desfigurassem sua poesia, mas sim a fizesse única. A vida dessa artista foi mesmo uma daquelas que nos faz perguntar: como ela conseguiu superar? Ainda na adolescência teve diversas passagens pela FEBEM, o pai dela, um mestre de obras, morreu engasgado com um pedaço de carne em um buteco, sua mãe, uma camelô, foi assassinada violentamente em sua própria casa com requintes de crueldade inacreditáveis e como ela conseguiu seguir, gente? Esse é o questionamento que me faço constantemente ao lembrar de Dina Di. A resposta ela mesma tratou de nos fornecer na já citada abertura do álbum do Visão de Rua: "Quando a gente sofre uma grande perda é como se ficasse um buraco na nossa existência  /  Por outro lado se eu não tivesse passado o que eu passei, perdido o que eu perdi, eu não teria profundidade como mulher, valeu a experiência". Sinceramente, eu acho pouco chamá-la de guerreira, Dina Di foi mais que isso. Imagina estar imersa na tristeza e conseguir transfigurar isso e ser madura o bastante para perceber as modificações internas que a tormenta fornece?!
Uma de suas últimas fotos com  Aline, sua filha.
 A Rainha do Rap cantou a esperança em muitas músicas como em "O poder nas mãos", cantou o amor na linda "É nóis", gritou para quem pudesse ouvir o problema da violência doméstica em "Dormindo com o agressor", cantou toda sua fortaleza em "Guerreira de fé", cantou sua fé em muitos trechos de suas canções como a "O filho pródigo", falou para a juventude acerca da violência urbana em "As coisas mudam", alertou  às jovens acerca das dificuldades enfrentadas por quem encara uma gravidez muito nova em "Marcas da adolescência", também falou dos entraves do mundo para a criação dos filhos na música "Meu filho, minhas regras",  relatou o cotidiano do sistema carcerário feminino em "Confidências de uma presidiária", enfim, Dina Di esteve na linha de frente do rap e da vida.
       Eis uma personalidade que me instiga e inspira, admirar sua arte e a forma com que esteve neste mundo é resultado dos ecos que ela construiu em suas músicas e posicionamentos. Dina Di, Guerreira de Fé, Rainha do Rap, sua voz se foi, mas os ecos dela em sua poesia são eternos. Só podia terminar esse textinho com uma frase dita pelo Helião, também no álbum "O poder nas mãos": "Ela é o máximo, luta, se esforça, tenta melhorar, tem sonhos, fica alegre ou triste por causa do amor, se não estivesse aqui, algo estaria faltando no rap, que o objetivo seja ação: Dina Di" ♥♥♥♥♥.

* Em muitos vídeos no Youtube, podemos revistar a voz e força das canções de Dina Di, há um em especial que nos apresenta outra faceta dessa artista, nele temos o registro da "face MPB" da cantora, vale conferir essa que foi uma de suas últimas gravações: http://www.youtube.com/watch?v=E7_BgvJHkjI&feature=youtu.be