O livro “Vivendo a arte: o pensamento pragmatista e a estética popular”
(1998), de Richard Shusterman, rende uma boa leitura para quem curte, escuta,
se interessa por arte popular, especialmente por rap. Shusterman é um filósofo
pragmatista que busca construir uma legitimação estética e teórica para a arte
popular na obra em questão. Para isso, o autor mergulha na análise do
interessante cenário que o hip hop vivenciou em sua formação nos guetos nova-iorquinos
do final da década de 70 ao começo dos anos 90, quando houve o lançamento da
obra.
O livro é acadêmico, inegável o fato, mas Shusterman empreende um tom bem
didático e tranquilo de ler nos dois primeiros capítulos da obra que discutem a
arte enquanto teoria oscilante entre a experiência e a prática. O terceiro
capítulo intitulado “Forma e Funk: o desafio estético da arte popular” traz uma
discussão sobre os esquemas de valoração antagônicos empreendidos na
classificação do que é bom gosto e o que não é, e como isso é usado como
impedimento para analisar as artes populares a partir de critérios estéticos
tradicionais. O quarto capítulo “A arte
do rap” é o que julgo ser mais relevante na obra em questão, nele Shusterman,
através da análise de uma letra de rap do grupo Stetsasonic, demonstra o porquê
do rap ser um gênero “capaz” de satisfazer os critérios impostos pela tradição
estética. O quinto capítulo versa sobre a forma com que arquitetamos o nosso
viver ética e esteticamente no pós-modernismo (é um capítulo muito do chatoooo).
Já que eu tô no meu blog, posso fazer uma resenha do jeito que eu quero! (hehehe).
Eu aguardei ansiosamente a discussão desse livro na matéria que tô fazendo da
Pós, tinha lido algumas partes soltas dele, incluindo a introdução, e salvo alguns deslizes, percebo discussões muito interessantes desenvolvidas
no livro do Shusterman. De uma forma geral e bem por cima, o intuito do
Shusterman é discutir a arte como parte integrante da práxis cotidiana das
pessoas desde sempre, para isso ele lança mão da teoria estética pragmatista
que define arte como experiência, mesmo sendo essa uma definição complicada
para os moldes filosóficos tradicionais. O autor faz várias ressalvas quanto a isso,
retomando a discussão feita por Adorno que descreditou o reconhecimento
pragmatista da funcionalidade artística, Shusterman o rebateu afirmando o exato
contrário disso, para ele a arte não pode ser separada da vida e da
funcionalidade, mas fez isso diante de muitas ressalvas também. Fazendo uma mea culpa, Shusterman indica um possível
“meliorismo” do pragmatismo em relação a arte popular: reconhecer suas falhas
estéticas e seus abusos políticos, assim como seu potencial estético e sua
grande capacidade de comunicação para uma práxis progressista” (1998: 11).
O caminho teórico do autor cansa o leitor lá pelas tantas, ele anuncia reiteradamente
aonde quer chegar, seu objetivo é repetido diversas vezes: construir uma
legitimação teórica para as artes populares que poderá ajudar na mudança de
algumas atitudes tradicionais em relação a mesma para que isso, de fato, mude
os fatos sociais reais. A análise da letra “Talkin’ all that jazz” do Stetsasonic
encabeça toda a discussão que sustenta o argumento do autor, mas creio que
tentar a todo custo provar essa “apreciação” teórica-estética do rap está na
contramão do discurso e do posicionamento social que o eu-lírico desse gênero
enuncia.
O quarto capítulo é o que de fato eu recomendo a leitura para quem curte
rap, o autor faz uma breve reconstituição histórica das raízes culturais do mesmo
para explicar o fundamento das deslegitimações que o gênero recebeu desde seu
nascimento: “As raízes culturais do rap e seus primeiros adeptos pertencem à
classe baixa da sociedade negra norte-americana; seu orgulho negro militante e
sua temática da experiência do gueto representam uma ameaça para o status quo
complacente da sociedade” (1998: 143). O autor discute acerca da originalidade existente
na técnica do sampling denominando-a de “apropriação reciclada”, a seleção e
combinação de partes de faixas já gravadas foi e é uma prática condenada por
quem a considera mera cópia, sem autenticidade, e não percebe o trabalho
criativo e de pesquisa feito pelo DJ, a discussão que Shusterman faz dessa
técnica do rap é bastante interessante, ainda mais pra minha pessoa aqui que de
técnicas musicais não entende nada. O autor também fala de como as colagens de
sons do cotidiano, as referências a programas de rádio, de TV, outros artistas,
enfim, como todo o universo ao redor do rap naquele dado momento é constituidor
fundamental de seus conteúdos. O cotidiano adentra ao rap de maneira certeira,
esse é um dos pontos que a tradição estética crê torná-lo datado e, por isso,
sem valor artístico, no entanto, esse dia-a-dia, que transpõe os problemas
locais das periferias que são o palco do rap, permite um diálogo universal
entre os guetos do mundo e isso é demais! O diálogo de temas universais como a
opressão e a injustiça permitido pelo rap entre as periferias é uma verdadeira
afronta à universalidade referendada pela estética tradicional. O rap destitui
da arte o caráter místico do “inalcançável”, nele os problemas são da ordem do
dia e a criação que os levará para as rádios e cd’s tem que comunicar com o presente,
aqui e já, sem mais delongas, sem blá blá blá's.
O capítulo sobre o rap abriu meu horizonte de baby diante da fundação
desse gênero, as notas de rodapé são uma verdadeira enciclopédia do hip hop, o
cara traz referências de músicas, discos e vídeos de artistas como Ice T, BDP,
Kool Moe Dee, Grandmaster Flash, Afrika Bambaataa, Stetsasonic, NWA, Public Enemy e muitos outros. O autor fala
sobre como esses artistas lidam com o conflito anunciado várias vezes em suas
músicas: exaltação do luxo ao mesmo tempo em que condenam a idealização da
busca do consumo desenfreado que não condiz com as origens do emissor primeiro de
sua arte, o gueto. Bom, o livro é do começo da década de 90 época em que isso
ainda era uma discussão em ascensão no rap, atualmente ostentar a riqueza
surreal virou um clichê para vários artistas do rap estadunidense e isso é o
que sempre me enojou um tanto no rap gringo. Quem vê de longe as cenas dos
vídeos que a MTV divulga, fica meio desnorteado com tanta sexualização do corpo
feminino, com as letras que abordam o sexo constantemente, sei lá, tudo de
longe parece estar tão bem resolvido na periferia dos EUA. Lógico que essa é
uma análise de quem tá vendo o macro vendido pela mídia, os discursos são
múltiplos sim e conheço vários exemplos disso, mas o que o mercado se apropria
e vende aos litros é o prazer fake e isso eu não curto. Nesse ponto eu acredito
que o rap brasileiro ganha e está há anos luz dessa picuinha aí, somos
periferia do mundo e isso não permite que nossos artistas percam de vista a
tensão centro X periferia que é o mote insurgente do rap desde sua origem.
A letra analisada por Shusterman para referendar sua existência enquanto
arte, "Talkin all that jazz", do Stetsasonic, traz no eu-lírico a auto-afirmação
performática de sua arte como uma estratégia para alcançar status. A letra se
inicia respondendo a acusação de que o sampling não é autêntico, o eu-lírico
reivindica para o rap seu status artístico esclarecendo para o ouvinte como o
mesmo é feito, além de acusar o crítico de ser um limitado ignorante do fazer
do rap. A letra segue fazendo uma exaltação do caráter renovador da tradição
musical afro-americana realizada pelo rap e finaliza mostrando o orgulho que
essa ligação com a tradição fornece ao gênero. Durante toda a música um tom de
ameaça é reiterado contra os críticos que desconhecem e tentam enquadrar o rap
a partir de um entendimento inadequado para o mesmo, mas os compositores também
tiveram o cuidado de selar a paz entre os ouvintes em geral, que não são esse
corpo crítico poderoso do rap, dizendo aos mesmos que eles podem conviver
pacificamente com o rap, pois a reivindicação de legitimidade artística que ele
empreende não é para que o rap se torne patrão, mas para que ele possa se
expressar publicamente em espaços midiáticos tão amplos quanto os destinados a
outros gêneros.
Fiquei um tempão pensando sobre
uma letra de rap brasileira que empreendesse uma discussão sobre sua
legimitidade artística perante a estética tradicional. Não consegui lembrar nenhuma,
pode ser falta de conhecimento mesmo, mas acho que isso ocorre talvez por conta
da resposta que o rap brasileiro dá ao que o rap gringo perdeu, a meu ver. A
discussão centro-periferia daqui não prevê legitimação do centro, não é para
ser rico sem ser mais nada para o espaço de onde se veio, não é para dizer que
é arte frente a outros gêneros, creio que o rap brasileiro promove o diálogo
local mais universal de todos, sem tomar para si a falha bandeira do
universalismo. Ele olha pra dentro, mostra para os de fora o que suas
violências causam naquele espaço da precariedade, mostra para os de dentro o
que pode ser feito para dar conta dos problemas ali presentes, fala da
injustiça, da opressão, da raiva, do amor, do futebol, da mãe e de todo o
universo da periferia que, aqui, ainda está muito distante de possuir os bens que pertencentes
ao centro. Não coloco na conta do rap a resolução de problemas estatais, sou
idealista e romântica só nas paqueras (hehehehe), mas percebo seu movimento
mediador entre os pares como uma estratégia de sobrevivência dentro e fora do
universo que o gestou. O consumo da classe pobre mudou bastante no Brasil nos
últimos dez anos, é um pulo anacrônico dizer que possamos estar vivendo o
momento da música do Stetsasonic hoje, afinal estamos falando da maior potência
econômica do mundo, mas esse poder aquisitivo vem surgindo no horizonte das
periferias brasileiras aos poucos e pode chegar o momento em que essa
legitimação perante “os outros” seja central para nosso rap. Por enquanto, acho
que estamos no lucro, pedir legitimação pode ser visto como uma importante
disputa de poder, isso é até parte do meu trabalho enquanto intelectual, mas colocar
pra jogo partindo do fazer, da prática de uma arte que está ali por si só é
mais condizente com o fazer que o rap propõe ao mundo: faça você mesmo.
Para ouvir "Talkin' all that jazz" --> http://www.youtube.com/watch?v=9_NOcYismhU&feature=related
eu não li o livro que você leu, e provavelmente não vou conseguir me expressar com tanta objetividade quanto você, mas tenho algumas considerações.... eu creio que generalizar rap "gringo" é sempre meio complicado, porque é gringo da onde? se você por exemplo analizar rap francês, que é gringo, você vai ter algumas boas suprezas como o mafia k-1 fry, que é meio cliche mas ao que tudo indica tem toda a legitimidade de voz da periferia. mesmo o rap estadounidensse ainda produz muita coisa boa, mesmo os grandes grupos, como o dead prezz (que pra mim talvez seja o grupo mais bem focado e com as melhores ideias no que diz respeito periferiaXcentro). outro ponto é sobre o que ja haviamos falado, sobre a atual cena do rap brasileiro... e de como a conversa periferiaXcentro estava sendo deixada de lado pra dar espaço para melodramas amorosos... assim creio que diferentemente dos EUA, o centro no brasil tenta se apropriar do rap nao como apenas como uma linguagem artistica, mas como um pacote fechado de altruismo e bom coração. ver emicida e mv bil no faustão ou em outro grande icone midiatico a mim traduz uma simples ação de boa vontade que o centro tem com a periferia, comprando e pagando por um simples e descartavel momento de reflexao social.... e mais uma coisa... da uma olhada nisso aqui http://www.vagalume.com.br/faccao-central/a-bacteria-fc.html que vai a te ajudar a refletir um pouco mais sobre a letra "talkin' all that jazz" ...
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