Está
para surgir novidade que cause tanto debate quanto a tal “ascensão da classe
C”. A preocupação em avaliar o impacto do consumo da “nova classe” é discutida
com alvoroço e frisson em diversos setores. Recentemente, Brasília foi palco de
um evento que refletiu acerca desse advento econômico brasileiro com mais
densidade do que vem ocorrendo. O projeto RAPensando (que reuniu shows de
artistas do rap do DF e outros Estados durante todo o mês de julho) encarou a
responsabilidade de promover um debate acerca da nova classe média e as
possíveis mudanças que isso ocasionou no rap. Qual seria a relação do avanço
econômico com avanço do rap em termos de público e mídia?
Os
artistas Marechal, Higo Melo (Ataque Beliz), Dino Black (ex – Morte Cerebral) e
MC Ahoto, sob a mediação da jornalista Yalê Gontijo, protagonizaram a conversa
acerca do impacto dessas novas dinâmicas no meio em que atuam. Esse texto não é
uma reportagem do que ali foi dito, já passou o tempo de ser uma notícia, mas
sim, uma breve reflexão acerca das ideias que ali surgiram.
Segundo
dados da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República*, está na classe média quem vive em uma
família de renda mensal per capita entre R$ 291 e R$ 1.109. Então, se o
somatório dos salários e rendimentos de quatro pessoas de uma família superar
R$ 1.164 por mês, todos serão considerados de classe média. O crescimento
econômico brasileiro e as políticas públicas de distribuição de renda são
alguns dos responsáveis para que um número cada vez maior de pessoas pudesse
lançar mão de diversas ferramentas, produtos e serviços outrora nada
acessíveis. Pensando no nosso cotidiano, é evidente que a possibilidade de
comprarmos computadores, celulares, termos acesso à internet ou mesmo termos os
dois reais para pagarmos a hora da lan
house confere novas formas de lidarmos, inclusive, com a arte. No entanto,
a fala dos artistas aqui citados alerta para o fato de que essa “facilidade” pode
escamotear outros interesses. A discussão da mesa foi norteada pela comum
compreensão de que a categoria “classe C” é configurada mais como um discurso
dissolutivo empreendido pelo Estado e pela mídia coorporativa que visa o
desmantelamento de algumas posturas combativas, do que como um evento que
desencadeie mudanças efetivas nas classes sociais.
O
rap está acostumado a ter como matéria os acontecimentos políticos, sociais e
econômicos historicamente maquiados pela máquina estatal. Se deparar com
percepção de artistas que colocam para jogo a estagnação existente nessa tramada
mobilidade é algo inesperado para os que forjam as ilusões de bem estar para a
classe que carregou “Brasis” nas costas. Os(as) artistas do rap que não compraram
o discurso estatal-midiático da explosão do consumo da classe pobre estão na
contramão da ideologia, essa que tem como objetivo fazer o(a) dominado(a)
acreditar e agir como se a exploração fosse natural ou até mesmo “glamourosa”,
vide a jornada de gliter que inventaram para as empregadas domésticas das
novelas. Todo esse confete para cima da “classe
C” me instiga e me transformou em um ser que pisa em ovos diariamente. Já olhei
com mais otimismo para esse evento, não quero, absolutamente, negar os avanços,
temos mais jovens de classes populares nas universidades hoje, porém não é bom perder
de vista que as exclusões são apenas atualizadas nessa sociedade. Há vinte
anos, ter um diploma superior garantia um salário que sustentava a família “clássica”
com tranquilidade, atualmente esse mesmo diploma sustenta o eterno aperto do
cheque especial sempre no vermelho, o carnê das Casas Bahia, os infinitos juros
dos cartões de créditos e daí, o patrão está lucrando menos com isso?
A
parte boa dessa instrumentalização da classe C como a educação, o acesso à
comunicação e aumento da autoestima dos jovens da periferia precisa ser
trabalhada para que não caiamos no fosso arquitetado pela ideologia: a
improdutiva sensação de “bem estar social”. O rap e toda uma gama de agentes que
atuam sem o braço do Estado como as mídias alternativas e as ONG’s (algumas
delas), estão formando boa parte da juventude herdeira de anos de exploração de
toda uma classe e isso fez com que o poder começasse a forjar mecanismos que freassem
a sagacidade reflexiva que essa combinação pode causar. Daí o burburinho e a
cansativa repetição de que o rap está mudado e expressando uma variedade
temática inédita. Será mesmo que o rap mudou seus temas ou o poder
estatal-midiático percebeu nele um potencial agente de reflexões e resolveu
criar uma caixinha oportuna de “futilidades” para enquadrar sua produção?
MC
Marechal, quando questionado na mesa acerca dessa “mudança temática” do rap,
respondeu que sempre existiu variedade temática no gênero, mas o que ocorre
hoje é a tentativa (já tão repetida) de apropriação de algumas manifestações
genuinamente populares por parte das elites. Assim fica fácil manipular: ou o
rap tem de ser sempre guetizado ou diluído para ser consumido por um público
maior e comercializado nos meios de comunicação que estão a serviço da
ideologia.
O
lema punk setentista do “faça você mesmo” é importante para a configuração do
momento que estamos vivenciando. A manipulação de ferramentas sofisticadas e
equipamentos refinados deixou a precariedade no passado, o rap hoje é produzido
com alta qualidade técnica e a agência comunicativa de seus produtores(as) expandiu
seu consumo de forma considerável. O otimismo temático que a ideologia tenta
referendar para o rap hoje é um fosso perigoso. Manipular a falsa impressão de
que seus temas estão diversificados pode ser mais uma forma de promover o “bem
estar social” e facilitar sua “apropriação” por parte das elites, como bem
colocou Marechal.
Esse
debate tem mil pormenores, construir pensamentos ao passo que as coisas estão
acontecendo é estar disposto a re(formular) ideias constantemente. O rap é um
gênero disposto a desconstruir discursos, prisões e violências a partir de
matéria do cotidiano e isso o obriga a empreender uma autorreflexão sobre sua
cena sempre. A discussão empreendida no projeto RAPensando deixou o alerta para
que estejamos atentos(as) à ilusão que querem nos vender. Ser empregada
doméstica não é tão glamuroso como diz a novela das sete, a “modernização” das
cidades que receberão a Copa do Mundo e as Olimpíadas não é tão benéfica quanto
parece (essa classe C “consumista” está indo viver onde agora?)**. Diluir o discurso do rap em litros de
água com açúcar e no “avanço da classe C” pode ser o desenho de uma alegria vaporosa
tão falsamente ilustrativa quanto a das Empreguetes.
* Fonte “O que define a classe média”, por
Moreira Franco e Ricardo Paes: http://www.sae.gov.br/site/?p=12489
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