Na primeira vez em que eu ouvi a música #Poucas Palavras, do Grupo
Inquérito, faixa do álbum "Mudança", fiquei agoniada pra escrever algo sobre sua construção de um fundo
musical muito contundente, belo e fidedigno para a Literatura Marginal.
Trata-se de uma música que me impulsiona consideravelmente, me arrepiou com sua
ode a essa faceta da expressão artística que me faz acreditar em melhores faces
para o mundo e isso me estimula a seguir. Tenho muito orgulho de estudar a
literatura que estudo, de admirar xs escritorxs que admiro e de saber que essa
produção periférica fissura muitos dogmas intocáveis. Isso é possível sim,
acreditem, xs pessimistas que me desculpem, mas botar fé na MUDANÇA é
fundamental.
Aqui no tardia eu já falei um
pouco da obra #PoucasPalavras, do Renan Inquérito, um livro que bombardeia as
certezas do cânone literário de uma forma desafiadora! “Se a história é nossa
deixa que #nóisescreve” (frase enunciada na música também intitulada
#PoucasPalavras) essa é a marcação de uma autonomia que nos foi surrupiada sistematicamente
ao longo da nossa história, a narrativa de quem sempre esteve à margem. Já
disse Foucault que o discurso é uma luta pelo poder, nessa perspectiva a
instrumentalização para que pudéssemos alcançá-lo seria a nós impedida a todo
custo. O que arranca minha admiração e me motiva é o discurso
fronteiriço forjado nos arredores desse mundo de impedimentos, a Literatura Marginal
é um exemplo cativo desse empreendimento.
O livro organizado pelo escritor
Ferréz, Literatura Marginal: talentos da
escrita periférica, tem como texto de abertura “Terrorismo literário” que
explicita o intuito dessa arte que ecoa discursos periféricos no reservado
espaço literário: “Quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e
literatura ruim/escrita
com carvão, a regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o retrato, pelo
contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto” (2005:9). Estaríamos
diante de uma procura incessante pela legitimação de sua escrita?
Não mesmo, esse não é o objetivo de quem escreve o que quer e por sua própria
conta, como disse o líder sul africano Steve Biko. Protagonizar, falar de si
para seus comuns, falar de si para xs outrxs, produzir os moldes e não apenas
usar aquele pensado para corpos alheios, não ser mediadx, cerceadx ou
estigmatizadx, ser arte preocupada com conteúdo SIM e criando a cada dia uma FORMA
que precisa de uma nova forma para ser compreendida são algumas das muitas características
da produção literária marginal.
O grupo Inquérito está em
consonância com a responsabilidade que Biko nos deixou como herança de luta e
vida na obra “Escrevo o que quero”. A música #PoucasPalavras se inicia
com a provocação: “Por várias vezes já tentei falar / Têm poucos para ouvir / Muitos pra escutar / Os desanimados / O rap tá embaçado / Nóis ‘somo’ movimento / Mas estamos parado / Fazer o que né? / Os dois lados da moeda / Uns tão envolvidos, outros tão de para-quedas / É favelado querendo ser boy / boy querendo ser favela / Mas no final, quem corre mesmo por ela?!” A problemática das motivações, anseios e construções que o eu-lírico almeja para o rap é a apresentação dessa canção, a polêmica estabelecida logo no início é uma manifestação de descontentamento com alguns descasos e apropriações feitas dentro de um movimento fundado na contestação dos problemas de quem pouco tem. O grupo Inquérito provoca e frisa a importância de se re(fazer) e se re(criar) através de expressões singulares dentro de uma linguagem que carrega em si identidade e endereço. Ferréz também marca essa ideia no “Terrorismo literário” na continuidade da frase acima citada: “A própria linguagem margeando e não os da margem, marginalizando e não os marginalizados, rocha na areia do capitalismo” (2205: 9).
Após dar lançar a discussão que promovem
em sua música, a letra segue e enuncia: "Vou dar um salve / pra quem não sabe / O rap tem base / Bagulho não é fase / Hoje a favela é moda nas tela / Cidade de Deus, Tropa de Elite,Novela / Nois grava disco,lança livro,faiz até sarau / Nois lava alma e depois põe pra secar no varal / Toca nos carros, toca nas rádios / Enche a auto-estima / Tipo torcida no estádio”. Há um movimento em franca expansão que protagoniza e reivindica a fala de si, promove seus próprios eventos e não pede “permissão” para construir sua expressão. Mais do que fazer uma ode vazia ao modismo intitulado “estética da violência” que invadiu o mercado editorial brasileiro no final dos anos 90, essa música marca temporalmente um crescimento gritante vivido pelas periferias atualmente que veio acompanhado da autonomia, do protagonismo e reivindicação | reinvenção de criação. Nesse mesmo sentido, escreveu Ferréz no texto aqui já citado: “Somos mais, somos aquele que faz a cultura, falem que não somos marginais, nos tirem o pouco que sobrou, até o nome, já não escolhemos o sobrenome, deixamos para os donos da casa-grande escolher por nós, deixamos eles marcarem nossas peles, por que teríamos espaço para um movimento literário? Sabe duma coisa, o mais louco é que não precisamos de sua legitimação, porque não batemos na porta para alguém abrir, nós arrombamos a porta e entramos” (2005: 10).
O terreno da literatura
contemporânea é muito escorregadio, a todo o momento nos deparamos com as
armadilhas da valoração arquitetonicamente construídas pelos guardiões do
portão que Ferréz anunciou arrombar. O sociólogo francês Pierre Bourdieu, em
“As regras da arte”, aborda as relações e a composição do campo literário para
perceber sua influência direta ao valor dado às obras. É inquestionável o fato
de que o trabalho de editorxs, críticxs, professorxs, pesquisadorxs etc, atua
na “eleição” das obras mais “relevantes”, “importantes” e “clássicos” entre
outras alcunhas. Nem é preciso dizer que a produção periférica que hoje arromba
portões e destrói muros, nem sempre é referenciada, aceita e estudada como
literatura por grande parte dos agentes do campo literário.
Mas para esse proposital
esquecimento e silenciamento respondemos estratégica e frontalmente: “a arte
que liberta não pode vir da mesma mão que escraviza” essa frase do poeta Sérgio
Vaz, presente no texto “Manifesto da Antropofagia Periférica” está para além de
um diálogo com a música do Inquérito, as duas selam o comprometimento com uma
arte em que nós tenhamos nossas subjetividades levadas a sério, sem caricatos
ou histórias únicas, hora de colocarmos tudo em nossos livros, fazendo eco
atitude de uma das precursoras dessa expressividade, Carolina de Jesus. Fecho meu texto com a frase dos meninos do Inquérito: "vida
longa à Literatura Marginal"!
Link para ouvir #PoucasPalavras, Grupo Inquérito: http://www.youtube.com/watch?v=m7jjltFXAaI
Andressita linda, as suas palavras transcritas por meio desse blog muito me esclarece e enobrece a alma. A partir de suas escritas passei a escutar rep e a refletir sobre essa literatura marginalizada que de alguma maneira abre meus olhos pra realidades antes nunca percebida por mim, outras formas de ler meu dia dia.Afrobjos, Alice.
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