Depois de um final de semana entre os infinitos papos acerca dos sentires com uma amiga muito amada, cheguei em casa com vontade de me jogar aqui em mi casa tardia e pensar um pouquinho sobre o AMOR. Recorrentemente eu venho matutando sobre isso, minha dissertação de mestrado fala desse sentimento aí e as infindas (im)possibilidades que o povo preto enfrentou ao longo da História para cultivá-lo. Meu campo de estudo é a Literatura Brasileira Contemporânea, escolhi buscar a representação do amor das personagens femininas negras na produção de algumas autoras negras do atual campo literário (só pra contextualizar). Não à toa, em meio a leituras, reflexões e sons que me acompanham atualmente, saquei que eu deveria buscar a representação do sentir também no rap, aquele encarado como música ruim por muitos e como literatura por quase ninguém.
Não querendo me aprofundar (ahora) no estatuto do que é literário ou não, o questionamento que me impulsionou a compreender a relação do amor sendo representado no rap foi, justamente, o incômodo que isso causa. Como assim esse tema UNIVERSAL que está em tudo quanto é música, desde que arte é sentimento, é tema proibido especificamente no gênero rap?
Volta e meia, meia e volta as críticas acerca das “novas” inserções temáticas no rap promovem debates intensos na cena e uma pá de gente sem noção fica por aí falando que a raiz contestatória desse gênero está sendo desrespeitada, uma vez que tem gente querendo cantar o amor. #MeuSonoVoltando2! Minha percepção é que novos grilhões são forjados de maneiras sutis ainda hoje (nem tão sutis, na maioria das vezes) e o amor acaba atuando como artigo de luxo “permitido” a poucos, forte isso né?! Mas tem seu fundamento...
“Precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar” reflexão de bell hooks ♥ em “Vivendo de amor” (2006). Nesse artigo, a autora fala sobre a relação dos negros e negras com o afeto, sendo o foco para as últimas, tal questionamento me levou a pensar que essa capacidade de amar “impedida” estava fortemente representada em algumas obras de autoras afro-brasileiras, mas percebi também que isso vem sendo ressignificado pelo rap brasileiro. A autora bell hooks ♥ pondera que mesmo com as dificuldades, o afeto foi manobrado nos tempos da escravização e conseguiu existir algumas vezes, mas seria irresponsabilidade apagar o impacto causado pelas negações enfrentadas por quem podia ter seus/suas companheirxs e filhxs vendidxs (quando conseguiam nascer) a qualquer momento. Que amor fomentar diante dessa realidade? O rapper Emicida disse: “Como você vai sonhar com o pódium, se amor é luxo e com a grana que nóiz tem só dá pra ter ódio?”. Esse questionamento sintetiza a angústia construída nos fios dos anos de pesadas opressões e que hoje tentam forjar para o rap como amarra de criação artística.
Teve uma galera que abraçou o debate que o rap impôs no cenário musical brasileiro do começo dos 90 e que engessou temas como a violência policial, a miséria, o tráfico de drogas, o preconceito racial e outros massacres como expressões únicas do gênero. É algo do tipo “vocês cabem nessa caixinha aqui e eu te consumo até aí, ponto”, isso funciona como uma amarra estigmatizante e muito violenta. Por que sair desse discurso que nos é tão caro e tentar expressar outros anseios tão cruciais como o amor, é visto de forma tão polêmica para alguns defensores do “rap fundamentalista” e (mais preocupantemente) para uma mídia que usa isso da forma que melhor lhe convém?
Em outro post eu falei sobre o livro Mulher e escrava, de Sonia Giacomini ♥, nele a autora apresenta o resultado de uma pesquisa feita tendo como base anúncios de periódicos do fim do século XIX que retratavam os debates públicos acerca da abolição, assim como serviam de palco para vendas e aluguéis de escravizadxs. Há um subcapítulo que fala sobre a “família escrava”: “A negação dos escravos enquanto seres humanos implicou necessariamente na negação de sua subjetividade, que foi violada, negada, ignorada, principalmente nas relações entre eles: mãe escrava-filhos, pai escravo-filhos e homem-mulher escravos” (1988: 37). Após a abolição, o homem e mulher escravizadxs foram descartadxs de maneira estúpida nas ruas, sem trabalho, casa ou qualquer coisa que possibilitasse a constituição e subsistência de uma família, o que já é sabido. Novos arranjos diante do precário foram estabelecidos, famílias matrifocais, que viram seus homens (envergonhados por não conseguirem prover seus lares) serem engolidos pelo álcool, foram sobrevivendo e pouco mais de um século depois ecos dessa história ainda são muito presentes em nossa sociedade.
Outras resistências e maneiras de se constituir diante das mazelas desse mundo foram protagonizadas pelo nosso povo, vide a história dos quilombos e a luta que nos fez o que hoje somos. Contudo, as exceções sozinhas não conseguem explicar as cicatrizes que séculos de impedimentos causaram em nossa subjetividade. Segundo Neusa Sousa Santos ♥, em Tornar-se Negro, negros e negras tiveram de “organizar e lidar dinamicamente com o mosaico de afetos” (1983: 8) uma vez que sua emocionalidade foi e é marcada por um processo histórico forte de inferiorização. Transpor angústias, buscar aleito e protestar são alguns dos motes para muitxs artistas, obviamente que os retalhos de vidas que integram nossa história também constituiriam essa rica colcha que é a música negra.
O rap é uma das formas de expressão desse leque tão rico e, talvez, por ser um gênero ainda novo (fim da década de 70 pra cá) esteja mais sujeito aos dedos apontados (?!). Outra hipótese é o fato de ter surgido com forte discurso de protesto, o que pode também tê-lo engessado na caixinha da ferocidade que fica longe da do amor (?!). Também pode ser uma explicação para a polêmica da expressão do amor nesse gênero, toda a áurea de preconceitos que o envolve e isso é o bastante para explicar qualquer tipo de limitação que queiram estabelecer para o mesmo. Acredito que essa última proposição elucide melhor todas as manobras que tentam forjar para esse gênero, pois “as raízes culturais do rap e seus primeiros adeptos pertencem à classe baixa da sociedade negra norte-americana; seu orgulho negro militante e sua temática da experiência do gueto representam uma ameaça para o status quo complacente da sociedade” como bem formulou Richard Shusterman (1998: 143). Outras vertentes da música negra falam de do amor e isso não gera tanto incômodo, mas como o rap surgiu com a banca da ameaça necessária, a atuação do amor como tijolo na construção dessxs rappers em suas canções destoa daquilo que se “aprendeu” a esperar dele. Esquizofrenia é pouco pra tentar explicar esse caminho torto! A lógica dos guardiões do status quo não deveria ser: antes falar de amor que das opressões infinitas que incessantemente edificamos para essxs excluídxs? Meu palpite é que exista mais subversão em amar que em vociferar até a mudez ou rouquidão, trata-se de uma revolução silenciosa e sentida por uma periferia mundial que se re(inventa) pelas vias do afeto. O rap expressa problemas locais dos respectivos guetos de seus/suas compositorxs, mas a globalização (que também tem seus males) permite um diálogo entre essas localidades periféricas formando uma ponte intensa de samplers e significados.
Tem gente pegando o tijolo-amor e tentando destruir o barraco inteiro. Os senhores, no período colonialista, decidiam o destino de possíveis famílias negras, decidiam sobre seu amor. Hoje, constituímos um grupo social ainda imerso em 99 problems, mas que quer, pode, deve, tem que, necessita AMAR! Tentar decidir sobre o nosso amor é démodé (como diria vóvis), vocês estão atrasadxs alguns séculos, esse poder aí é datado e COM CERTEZA foi sabotado em várias formas de resistência cotidiana que forjamos durante nossa história. Logo, nem nos anos de negreiros navios, o poder imaginado absoluto sobre nossos corações foi totalmente alcançado. Agora mesmo é que não vai rolar, nem vem de garfo que hoje é sopa (como diria vóvis novamente). O rap veio sabotar certos raciocínios com seu amor possível.
Excelente...
ResponderExcluirGostei, principalmente, pela explicação da nossa complexidade nos relacionamentos/sentimentos. Abraço!
ResponderExcluirValeu, Flávio!! Bjão
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