quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Por nós, por amor

Todo mundo já foi a um show em que os sentimentos pareciam transbordar do palco até você, x da poltrona, na velocidade da luz. Isso ocorreu comigo terça-feira, no espetáculo emocionante da Ellen Oléria e do Gilberto Gil. O velho tropicalista baiano que me desculpe, meu pai, que me ensinou a amá-lo, que me desculpe também, mas o sentir aos rios veio até mim através da voz e magia da amiga Ellen.
Uma noite especial na companhia da minha irmã apenas. Duas sistas, mãos dadas, cumplicidade, risadas, micos de míopes que sentam nas poltronas erradas e o “falar no olhar” que é raro à maioria das relações. Quem já viu apresentações da Ellen Oléria sabe a natural luz que dela emana e as traduções do sentir, do entristecer, do amar e do guerrear que ela imprime em sua poesia, seja ela nova ou antiga. A emoção está sempre presente quando a vejo, mas naquela noite foi diferente, talvez a atmosfera menos agitada do Centro de Convenções tenha proporcionado uma intimidade maior para eu e minha irmã que aproveitamos o conforto e aconchego para ouvirmos várias músicas com os dedos entrelaçados.
Lá pelas tantas, chegou a hora de a Ellen trazer nossa mãe ali pro meio da apresentação, SALVE, nega! Não sei o que escrever para saudar a “Antiga Poesia” que é o hino mais belo que os movimentos de mulheres negras poderiam ter. Clementina, Lecy, Jovelina, cotistas, caribenhas, clandestinas, negras da América Latina, minha mãe e avós todas ali juntas, entre nossas mãos, calor, história e lágrimas que inevitavelmente transbordaram como que querendo encontrar o sentimento que vinha daquele palco, sentir de toda uma vida.
Vidas de poesia sem maestria, de quem teve de trabalhar e não pode estudar, esquentando a barriga no fogão e esfriando na bacia de água fria. Essa é a ordem do dia de mulheres pretas nos recantos mais escondidos e diferentes desse mundo e sei que todas elas sentirão a mesma coisa que eu e minha irmã sentimos quando ouvirem essa canção.  Sentirão um êxtase, um conforto, uma melancolia de história dolorida também, mas que combinada com uma mescla de coração que bate em compasso íntimo e singular, soprará fôlego de guerra imediato nessas Dãdaras e Akotirenes.
Tudo no mundo converge muitas vezes, não sei qual é a liga da vida que faz com que acontecimentos aleatórios tomem dimensões importantes na nossa trajetória. Sabe quando um livro cai na sua mão e parece que caiu foi a maçã do Newton na sua cabeça? Foi o que rolou com o Mulher e escrava (1988), da Sonia Maria Giacomini, fruto de uma pesquisa feita tendo como base anúncios de periódicos do fim do século XIX. Os estudos acerca da mulher negra escravizada são escassos (novidade?!) e diante dessa realidade, a autora se propôs a fazer um estudo acerca das relações sociais vivenciadas por essas mulheres no período da escravidão.  Nessas páginas, versos da “Antiga poesia” estão materializados em fragmentos de vidas da nossa linhagem, de uma forma muito compromissada e densa.
Passei a leitura toda mastigando as pedras que tivemos de carregar (lembrando que isso quebra dentes e causa indigestão). Banguela e com o estômago duro, topei correr (atrasadona porque também estava acabando de fichar esse livro) até esse espetáculo solvente de pedregulhos e ourives do momento-joia-preciosa que vivenciei, o que valeu muito por todas as penas e me refez ali, por nós, por amor.

*Esse post tem milhões de referências diretas às músicas da tão querida e inspiradora amiga Ellen Oléria. Vídeo da “Antiga Poesia” aqui ó :http://www.youtube.com/watch?v=iwbWZuVkI0w
 **As irmãs Andressa e Krissiane agradecem ao amigo Abayomi Mandela pelos ingressos. Valeu, pretinho! =)
***Janeiro é mês das minhas poemas Cida e Kriss, mãe e irmã capricornianas, pode?! Esse post é de vocês! As amo muito! =*

4 comentários:

  1. Antiga poesia...
    Nova vida, vida lutada, criada, sobrevivida entre dores e luzes... esplendora pela criatividade das negras mulheres que faz da luz negra a mais in-tensa que há!
    Meus respeitos e reverências às mulheres negras!
    =:***

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  2. Nem precisa agradecer. Pelo jeito era para vocês terem ido mesmo. De qualquer forma teria sido especial para mim, mas com certeza era o momento de vocês!

    Fico feliz de ter conseguido passar a bola ao invés de ser fominha e chutar direto pro gol. Vocês marcaram um belo gol de letra!!!

    E foi como eu falei no facebook. Eu tinha ingressos pro show da Ellen que o Gil ia abrir para ela. E não foi isso o que aconteceu?
    :D

    Muita paz pra nós!

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  3. Garota,
    Ótimo texto...
    Gostei.
    Imagino que já esteja traçando algo para o futuro - quiçá um livro.
    Remeteu minhas lembranças a um texto que li nos tempos de Graduação, Alisando nossos Cabelos - uma crítica/reflexão sobre as condições de nossas mulheres negras no convívio familiar e social.
    Ótimo Blog.
    Abraço

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  4. Uã, mas que declaração de amor linda! Reverência diária a quem nos fez e faz, tô contigo.

    Bayô, paz pra nós sempre preto-querido!!

    Flávio, obrigada! Mas no dia que eu chegar perto de uma vírgula da bell hooks.. aiai.. minha inspiração maior! Máximo respeito!

    Bjxs nocêis tudo! =*

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