segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Mulher no rap só quer roupa justa e rebolado? As Marias respondem...

No começo da semana passada, uma reportagem sobre três cantoras de rap foi veiculada no portal G1:   http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2012/01/rap-feminino-brasileiro-prefere-cantar-felicidade-protesto.html. Antes de escrever minha opinião sobre o que ali foi construído, ponderei que o blogueiratardia poderia se tornar um blogueira-que-só-quer-falar-de-rap-tardia (rs), mas é fato que quando estamos próximos de algo, as convergências e acessos funcionam de forma a nos levar pra dentro daquilo que se tornou íntimo, de uma forma muito fluida.
O texto do G1 propõe, já no título, a correlação: mulher no rap = alienação e homem no rap = protesto.  A jornalista elegeu Karol Conká, Flora Matos e Lívia Cruz como seu recorte dentro das vozes femininas do rap brasileiro e argumenta que as letras dessas expressam sentimentos de felicidade, relacionamento e de amizade como sua temática principal, em detrimento de uma expressão do protesto, mais condizente com os fundamentos do rap.
Troféu joinha pra amiga jornalista que vacilou no começo, no fim e no meio da reportagem. No subtítulo da matéria, a autora diz que as cantoras pregam o fim do sexismo no rap, transpondo um mote reiterado por várias vezes no discurso dessas artistas. No entanto, afirma que tais cantoras são “sensuais e pouco engajadas”, fazendo um verdadeiro desserviço para a luta das mesmas que querem demarcar seu espaço dentro de uma cena cerceada e, ainda, estigmatizada para as mulheres. Alguém avisa pra colega que ela nada mais fez do que reafirmar o discurso do sexismo que constrói as amarras das performances e delimita violentamente os espaços de figuração destinado às mulheres e ao “feminino”. A caixinha dos seres sensuais e burros, para usar os estigmas eleitos pela jornalista, é a morada forçada que o discurso machista forjou para desqualificar as iniciativas femininas em quaisquer frentes.
A mesma mídia que diz que o rap “atual” é pouco engajado, ao se referir a novos destaques da cena, muda de ideia ao contrapô-lo ao rap feminino “alienado e vestido para matar”. Ou seja, ao aproximar o rap supostamente diluído masculino ao das garotas que estão construindo seu espaço nesse estilo, aquele imediatamente se transforma em campo de protestos ferozes. Ai que sono, hein gente???!!! Isso é evidenciado quando a jornalista diz que as cantoras não estão ligando pra falta de amor em SP ou para as desigualdades sociais, mas sim para roupas justas e o rebolado. A mídia que modela a forçada batalha entre diferentes gerações do rap (falei disso aqui ó: http://blogueiratardia.blogspot.com/2012/01/geracao-que-revolucionou-geracao-que.html), dizendo que ele agora está diluído com açúcar e afeto, agora o toma como altamente crítico e combativo. Tudo depende da perspectiva de que se fala, sobre o quê, em detrimento de quem.  #nonsense
Não é de hoje que as práticas associadas ao feminino são diminuídas nos mais diversos campos, a velha conhecida misoginia.  O século XX foi marcado por conquistas árduas das mulheres no espaço público, porém fazer-se presente no mundo do trabalho não foi garantia de que o respeito inexistente na casa patriarcal seria alcançado. Diminuir, desmerecer, sensualizar, rebaixar o trabalho, as ações e inteligência das mulheres foi a roldana da engrenagem encontrada pelo capital que precisava do trabalho feminino, mas que também devia continuar forjando as práticas responsáveis pela manutenção do poder masculino. É né, onde quer que estejamos, seremos diminuídas e nosso discurso será estigmatizado. =O
Não espero nada de melhor vindo da mídia, a matéria é um erro, também não é o momento de falar dos enfrentamentos diários que essas cantoras protagonizam dentro do movimento Hip Hop (isso merece um post exclusivo;) ).  Resolvi escrever falando do que conheço minimamente e do que responde a acusação de alienação, baladismos e afins feita às meninas que escolheram não mais engolir os sapos. Das três rappers citadas na reportagem conheço, de fato, o trabalho da Karol Conká e discordo demais do alheamento que jogaram pra ela.
A cantora tem muitas músicas que retratam o universo da balada, dos agitos e que muito me apetecem (hehehe) e isso é geracional, eu acho. Nós duas temos 25 anos e tenham certeza de que mulher preta, dessa faixa etária, que quer mais da vida do que um marido-meia-boca e uma casa-com-cheiro-de-detergente, que estuda e trabalha há milianos quer mesmo se divertir um pouco nesse mundo que nos quer silenciadas e tristes. Eu tô tipo querendo ser amiga dela neh?! (hehehe).  Enfim, além dessa temática que também evidencia a afirmação de uma autoestima adquirida num processo doloroso, Conká canta os preconceitos que enfrenta por parte de rappers que julgam seu trabalho como inferior e fala também de questões muito específicas às mulheres negras.
Esse é o caso da letra “Marias” a minha mais querida nos últimos tempos, que problematiza e evidencia a perspectiva identitária esfacelada de uma jovem negra que se vê diante do dilema da impossibilidade amorosa. Karol Conká aborda em sua letra algumas problemáticas que desestabilizam essa jovem ainda em formação e, de forma muito original dentro do arcabouço temático das letras de rap nacional atuais, adentra ao tema do alisamento dos cabelos e as implicações que o mesmo imprime nas vivências das mulheres negras.
No artigo “Alisando nossos cabelos”, bell hooks    constrói de forma bela e tocante um texto que se inicia associando o rito de “alisar os cabelos” ao momento de transição do ser menina para o ser mulher, era o que a autora e suas irmãs almejavam ansiosamente alcançar. Os primeiros versos da letra de Karol Conká dizem: “Escrevendo histórias vivendo cada segundo / Nomes do passado que ainda percorrem o mundo, / orgulhando envergonhando / muitas se sentem sobrando / sem estímulos na vida algumas seguem se enganando”. As jovens negras são aquelas que “seguem se enganando” em busca de uma aceitação dentro da sociedade que tem seus corpos como abjetos, mais adiante na tentativa de sentirem-se aceitas, tais jovens procurarão, no processo de alisamento dos seus cabelos, a solução para findar com a vergonha que sentem de seu corpo.
Na segunda parte da letra, Conká evidencia a possibilidade de uma existência positiva para essas jovens negras, mesmo ainda estando envoltas no berço de ausência de estímulos que as ofertassem outra vivência no mundo: “Sempre existirá aquelas que fazem a diferença / Não pensam em recompensa / Que tem caráter presença / Sempre te ganham licença / Chegam com classe decência / Tem argumentos propensos / Milhares já muito mais querem sempre um pouco mais”. Esse contraponto é bastante interessante, uma vez que não fecha o leque daquelas jovens negras, a música aqui atua como uma mídia que segue caminho oposto àquela que massacra esse segmento com representações estereotipadas apenas.
As jovens negras (nozes!!) referendadas na letra de Conká são profundamente afetadas por essa mídia que diariamente prega a beleza pautada na branquitude como única possibilidade de ser bela. Isso acaba levando-as por uma incessante busca do corpo mais semelhante possível ao do branco, sendo o cabelo crespo a antítese desse ideal, sua modificação atua como porta de entrada para o mundo “socialmente aceito”. O refrão de “Marias” enuncia: “A mocinha quer saber por que ainda ninguém lhe quer / Se é porque a pele é preta ou se ainda não virou mulher / Ela procura entender porque essa desilusão / Pois quando alisa o seu cabelo não vê a solução”. A autora bell hooks , no texto acima mencionado, faz um compêndio acerca das transformações sofridas pelo ritual do alisamento:  de momento íntimo de trocas entre mulheres negras até chegar no “rito” mercadológico e dolorido que figura o processamento químico atualmente. As jovens negras problematizadas nessa canção estão inseridas no contexto mercadológico-doloroso no qual os processos químicos de alisamento são explorados ao máximo.
No que diz respeito às relações afetivo-amorosas, bell hooks  conta da sua experiência como professora e dos relatos que ouviu de algumas alunas negras e concluindo que: “As mulheres negras heterossexuais falaram sobre o quanto os homens negros respondem de forma mais favorável quando se tem um cabelo liso ou alisado” (2005). O eu-lírico dessa canção evidencia o problema da jovem negra brasileira contemporânea que se vê subjugada e preterida nas relações afetivas mesmo após ter se submetido ao processo de alisamento químico dos cabelos.
Beatriz Nascimento ♥, no texto “A mulher negra e o amor”, disse que o ideal de branquitude “é uma violência invisível que contrai saldos negativos para a subjetividade das mulheres negras, resvalando na afetividade e sexualidade destas” (1990). Nos últimos versos, Karol Conká diz sobre a jovem negra: “Sai de saia justa, salto alto, miniblusa / Se sentindo madura com vergonha da pela escura / Se decepcionando com o reflexo do espelho / E querendo o mesmo visual dourado da modelo”. Percebemos a influência direta da não aceitação do corpo negro sendo posta em contraponto ao ideal branco de beleza, a compositora articulou de maneira muito sensível o dilema da dor vivido por jovens negras.
Acho que eu vi muito mais do que roupa colada e rebolado e vocês? Acredito que através de pequenos arranjos, como esse articulado por Conká a partir da arte, a formação identitária de uma nova geração de meninas negras será estabelecida de maneira menos dolorosa, ou pelo menos com um fundo musical mais expressivo para as mesmas.

Link para vocês ouvirem “Marias”: http://www.youtube.com/watch?v=139YlOe8uXg


5 comentários:

  1. Adorei o texto! Falta um pouco mais de informação a alguns profissionais de jornalismo mesmo, é um erro fatídico falar de algo que não conhecermos nem que seja um pouco. Estereotipar algo tão expansivo quanto a participação das mulherada na cultura Hip Hop hoje é besteira... Mas infelizmente é algo quase que diário, numa sociedade em que se "julga o livro pela capa" e que as pessoas ainda insistem em classificar as coisas por "feminino" e "masculino" como se fossem banheiros.
    Como comentei no texto da Lívia, Rap é rap... Verdadeiro e bom... Não feminino ou masculino.
    Tá mais do que na hora que as pessoas pararem de achar que não se pode falar de amor e coisas boas, ao mesmo tempo que se fala de realidade cruel em que vivemos. Roupa colada e rebolado não pode significar futilidade.
    Parabéns pelo texto, to seguindo o blog :) Beijos.

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  2. Muito obrigada, Mariana! Seja bem vinda à casa tardia! Bjxs =)

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  3. Outra coisa Mariana, eu não li a resposta da Lívia. Pode me passar o link do texto? Abraço!

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  4. Opa, pra já... Ela fez essa nota aqui no facebook, se liga:
    http://www.facebook.com/note.php?note_id=10150704194755410

    :) Beijos!

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  5. A grande mídia é branca, masculina e aristocrata. Nós, mulheres, negras, brancas, somos muito mais. Adorei!

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