domingo, 12 de fevereiro de 2012

Por um mundo mais humano no quarto de despejo

           Essa semana o meu livro #PoucasPalavras, do Renan Inquérito, chegou aqui na minha caixinha de correio, ainda não tive tempo de ler tudo, mas grande parte do que li já me cativou.  Fiz igual criança que abre o livro e busca primeiro as gravuras (hehehe) e nisso dei de cara com uma ilustração do grafiteiro Mundano  ♥, artista com a incrível capacidade de falar muito através das imagens: #PoucasPalavras.

Grafittis do Mundano em diversas carroças de catadorxs. 
Mundano (nome surgido da combinação das palavras MUNDO + HUMANO) primorosamente ilustrou o livro de Renan Inquérito, o que resultou num trabalho de conversas líquidas entre forma e conteúdo. A página 119 chamou minha atenção logo de cara, nela há uma arte que faz eco ao projeto muito fera, encabeçado pelo grafiteiro, chamado Cidades Recicláveis. Essa ação consiste em lançar mão das carroças dxs trabalhadorxs catadorxs de materiais recicláveis como veículo de mensagens entre esses, o artista e a cidade.  Mundano, em muitas entrevistas, diz que a ideia da valorização de um trabalho tido como abjeto pela população figura como mote primeiro do projeto. Impossível seria esse trabalho não me remeter à Carolina de Jesus    , autora do muito estimado Quarto de Despejo: diário de uma favelada, lançado em 1960, obra em que a escritora retratou seu cotidiano como catadora de lixo e moradora da favela do Canindé e enunciou: “Quem trabalha como eu tem que feder!” também na página 119!
            Fato que a coincidência maior aqui não é o número igual das páginas, mas a crítica à sociedade que pretende esconder o indesejado em baixo do tapete do quarto de despejo. Na cena em questão, Carolina estava refletindo acerca dos comentários que uma mulher fez ao passar por ela dizendo que seu cheiro era horrível, semelhante ao do bacalhau. A escritora, que deu sentido à literatura pra mim, disse a tal senhora que havia trabalhado muito, carregado mais de 100 quilos de papel, que estava calor, que o corpo humano não prestava e finalizou: “quem trabalha como eu tem que feder!” repito no texto, uma vez que nada no mundo literário me arrepiou tanto nessa vida.  Em diversas passagens do seu livro, Carolina diz que a favela é o quarto de despejo da cidade, assim como seus moradores são o lixo da mesma. Carolina já denunciava a relação nada amistosa que a cidade alimenta com quem trabalha com o lixo e vive no espaço do despejo, arquitetado por seus poderosos nas primeiras décadas do século XIX, as favelas.   
          Mundano já pintou mais de 150 carroças nas cidades de São Paulo, Nova York (EUA), Buenos Aires (Argentina), Santiago e Valparaíso (Chile) e agora tem a empreita de levar o trabalho para outras cidades brasileiras. O grafiteiro atua em conjunto com xs catadorxs, inclusive as frases são idéias dos mesmos. O profeta Gentileza leva (pois ainda estão lá) palavras bonitas, para a vida de milhares de pessoas que circulam pelo caos citadino, através do muro estático, o alcance de várias carroças que se movem por todos os cantos da urbe é tamanho, ótima ideia, ótimos recados! 
        As pessoas não têm noção da dimensão do trabalho dxs catadorxs de material reciclado diante da cidade. Segundo o IBGE, na Pesquisa Nacional de Saneamento Básico de 2000 (imaginem isso hoje!), mais de 125 mil toneladas de resíduos domiciliares são coletadas todo dia no Brasil. Historicamente, os trabalhos de menor prestígio são ocupados por pessoas pobres, sem estudo formal e negras, ou seja, xs despejadxs. Esses que a cidade quer invisiveis, desde os tempos de Carolina, são agentes transformadores do excedente da mesma, Carolina refletiu sobre isso e disse: “Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares do lixo e dos marginais. Não mais se vê os corvos voando nas margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos” (2005: 48). Combater o preconceito e a ignorância com arte é uma gentileza dxs artistas do reciclo, do grafite e da escrita com o mundo.

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Instalação audiovisual que reproduzia as paredes do barraco de Carolina
Uma das frases dxs catodores pintadas por Mundano nas carroças diz: “Meu trabalho é  honesto e o seu?”. Essa é uma das muitas alfinetadas que Carolina de Jesus destinou aos políticos em  uma obra, a autora tinha uma perspectiva muito aguçada das manobras políticas diante da favela: “Eles gastam nas eleições e depois aumentam qualquer coisa. O Auro (deputado federal na ocasião) perdeu (dinheiro no período eleitoral), aumentou a carne. O Adhemar (governador de São Paulo naquele ano) perdeu, aumentou as passagens. Um pouquinho de cada um, eles vão recuperando o que gastam. Quem paga as despesas das eleições é o povo” (2005: 114).  Com certeza Carolina de Jesus gostaria de pintar em seu carrinho (ela o chama assim) de catar papel: “Reciclem os políticos”. 
          O trabalho dxs catodorxs é alvo de milhões de violências, a discriminação experenciada por essas pessoas é algo de uma agressão tão profunda que rouba minhas palavras quando tento elucidá-la. Quando eu era criança, meu pai me explicou o motivo pelo qual ele sempre andava perfumado e bem arrumado. Senhor Huanderson era lanterneiro e pintor de automóveis, o que o obrigava a trabalhar sempre molhado, sujo de tinta, suado etc. Hoje, ele é tem sua própria loja, já caminhou muito na vida e alcançou um novo posto social (inshalá!rs), quando ele contou pra mim o porquê de andar arrumado quando estava fora do trabalho eu tenho certeza que não compreendi bem (era pequenina), mas ficou na memória o fato dele sempre ter me mostrado as muitas faces do racismo que, quando combinado às situações de trabalho subalterno e racializado, acaba forjando amarras ainda mais potentes de opressões que ele tentava minimizar a sua maneira. A relação do nosso corpo com o trabalho é cheia das escalas de diferenciações, gradações de cor, de ambiente, classe e muitas outras influências. Carolina de Jesus, alvo de constantes acusações sobre sua limpeza, desabafou em seu diário: “SE ESTOU SUJA É PORQUE NÃO TENHO SABÃO” (2005: 89). A autora, na citação que fiz bem no começo do post, fala da relação do seu corpo com seu fazer, aqui ela reflete sobre sua condição econômica de miséria e as implicações disso diante da sua apresentação pessoal. Por mais que pareça improvável (há quem possa achar que é só um desenho numa carroça), o trabalho do Mundano age diretamente sobre a autoestima de quem, por suas condições de trabalho, se vê sempre sujx, potencializando, então, os apontamentos de toda uma sociedade que hostiliza o que não se encaixa em seus padrões.
         O grafiteiro e xs catadorxs encontraram uma forma perspicaz de piscar prxs outrxs cidadãos e cidadãs em frases como: “Meu carro não polui e o seu?” ou “Agente ambiental trabalhando, não buzine”. Essas cutucadas são de uma sutil ironia, muito gentis e cheias de efeitos, o velho e eficaz tapa com luva de pelica: faço meu trabalho, garanto sobrevivência pra mim e melhorias pra você, cidade, me respeite. Carolina de Jesus, não apenas nessa obra, mas também em seu Diário de Bitita, nos leva a um mergulho sobre a vida infausta, como ela mesma se refere a sua. São muitas as agruras de quem está nas ruas, é viver, é morrer, tudo junto numa angustiante combinação. Longe de mim colocar flores onde muitos dissabores, mas longe de mim também podá-las. Tiro muito meu chapéu para quem tenta modificar nossos cenários sociais engessados e sufocantes, Mundano, em parceria com o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis, faz isso a olhos vistos. Temos a arte atuando como agente contrária à invisibilidade que a cidade imprime, seja ela sendo expressa nos muros, nos livros, nas músicas, nos diários ou nas carroças.


* A montagem das quatro carroças com a arte do Mundano, assim como a fotografia final, foram retiradas do endereço: http://tedxveropeso.blogspot.com/2011/08/mundano-arte-como-instrumento-de.html
** A segunda imagem é uma instalação audiovisual montada na ocasião do “Seminário 50 anos do quarto de despejo” que reproduzia as paredes do barraco de Carolina na favela do Canindé, disponível em: http://comunidadequilombaque.blogspot.com/2010/11/quarto-de-despejo.html

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Ninguém é inocente na cidade cinza

A arrumação dominical da minha casa teve como fundo musical o álbum do Rodrigo Ogi, As crônicas da cidade cinza, lançado ano passado e que foi das melhores criações que chegou até mim em 2011. Entre colocar a roupa no varal e limpar os móveis, minha cabeça deu um giro por Sampa, suas ruas e as dificuldades impostas pela mesma e que vi sendo impressas por outrxs artistas em suas obras. Imediatamente, meus pensamentos caíram no livro que mais bem quisto por mim nos últimos tempos, Ninguém é inocente em São Paulo, de Ferréz, lançado em 2006.
Ferréz escreve na “Bula” de seu livro Ninguém é inocente em São Paulo: “eternos amigos que continuam a me contar suas histórias, que sempre estão ao meu lado”. No mesmo tom, Rodrigo Ogi, citando Plínio Marcos, finaliza suas Crônicas da Cidade Cinza: “Eu conto histórias. Histórias que eu vi com esses olhos que a terra há de comer um dia, ou histórias que eu ouvi, no buxixo das curriolas”. Narrativas que têm como pano de fundo a SP sem amor para uns e que imprime dilemas cotidianos em seus habitantes. São muitas as personagens criadas pelos dois artistas: o motoboy que precisa ser safo para dar conta de seu trabalho tão arriscado, o tiozinho dono do bar que não agüenta mais os boyzinhos da faculdade falando em revolução, o PM que pode não voltar para sua casa depois de um dia de trabalho, o cachorrinho pensante que muda de um prédio luxuoso para morar na favela junto com seu novo dono escritor, o safo malandro que encara toda a gangue do Zé Medalha sem fugir da briga, o cara que paga um lanche no Habibs para dois meninos moradores de rua que não podiam nem comer e nem brincar no barco viking do estabelecimento, o cidadão que se vê como concorrente de si dentro em uma corrida de ratos cheio de carnês pra pagar e uma família pra sustentar, o grupo de rap que é entrevistado por um jornalista que tem pânico da periferia, o bandido que tem a premonição que naquela noite a missão seria fracassada e desiste da investida, o repositor de estoque do Pão de Açúcar humilhado por seu chefe (UFA!!! hehe) e muitas, muitas, muitas outras vozes que contemplam o universo paulista periférico e que agora adentram ao mundo literário como protagonistas. 
          Quando ouvi o disco do Ogi, as imagens velozes por ele ali reunidas me transpuseram prontamente para um cenário cinematográfico. As crônicas rap do Ogi e os contos de Ferréz dialogam visceralmente, cada uma em seu veículo, mas ambas com a tarefa de representar a multiplicidade de vidas engolidas pela imensidão cinzenta, mas que articulam suas possibilidades em meio ao caótico. Alessandro Buzo, em Hip Hop: dentro do movimento (2010), diz que sua produção integra o quinto elemento do hip hop, o conhecimento, este que reúne a produção de livros e filmes. As diversas manifestações desse movimento são cada vez mais simbióticas (por exemplo, a capa da mixtape de Ogi trás uma arte dos irmãos grafiteiros Os Gêmeos ) e são essas aproximações que vejo fortemente na literatura escrita e a cantada de Ferréz e Ogi.
        O primeiro conto de Ferréz “Fábrica de fazer vilão” nos arranca do comodismo logo de cara, trata-se de um episódio em que a violência policial é levada ao extremo e toda uma família negra é humilhada. O conto narrado em primeira pessoa tem como sujeito de enunciação um rapper acusado de ser vagabundo por parte dos policiais que invadem sua casa, ao que ele que responde: “sou trabalhador”.  Essa frase guarda consigo a dignidade de toda uma classe economicamente desfavorecida e atua como mote e ordem do dia das várias personagens das duas obras.  Nesse conto de Ferréz, os policiais ameaçam atirar em alguém daquela família, mas não efetivam o assassinato, a diversão deles ali era instaurar o medo. Já a faixa 10 do álbum de Ogi, Noite fria, narra uma cena na qual a personagem, não por acaso, é ouvinte do Sabotage e  sai com parceiros na madrugada em busca do “corre” da noite e acaba se deparando com  a polícia que o espanca e depois o mata. As repetidas histórias do cotidiano não só de São Paulo, mas de todo um país marcado pelo racismo da polícia que se esconde atrás dos “autos de resistência” são denunciados e problematizados pelos dois artistas.
O meio do caminho do rapaz que é trabalhador, mas se vê engessado pelo desemprego é tema da faixa “A vaga” (a melhor, na minha opinião). A narrativa conta o dia de um jovem que se vê diante de portas constantemente fechadas e que  enfrenta a vontade de fazer o jogo virar repentinamente, do jeito que der pra fazer isso ocorrer.  A personagem pensa em roubar o iphone da minazinha que moscou, mas sua consciência, com voz de Mano Brown, grita: “a vaga tá lá esperando você”.  O alerta, acerca da vaga indesejada, dado no diário do ex-detento Jocenir se contrapõe a tão almejada vaga de emprego que é o anseio presente no conto “No vaga”, de Ferréz.  As histórias de dois amigos desempregados e suas esperanças compõem o enredo desse conto.  Ambos reclamam da dificuldade de serem fichados em algum emprego, e diante do entrave, aceitar cair conscientemente na lorota das empreitas duvidosas é a saída vislumbrada pelos mesmos. Antes ser contratado investindo seu próprio e pouco dinheiro no negócio, do que não ser contrato de forma alguma. O narrador da música do Ogi encontra sua vaga de limpador de candelabro, os jovens de Ferréz topam vender três planos dentários para, então, serem contratados e assim, forjando resistências, esses jovens arquitetam vagas paras suas corajosas vidas encaradoras do armado concreto.
 A faixa que inicialmente mais me empolgou nas crônicas foi “Os tempos mudam”, parceria do Ogi com a Lurdez da Luz e que enuncia mudanças significativas no cenário social. Os dois cantam no refrão que os tempos já não são mais os mesmos e avisam: “se prepare, pois seu mundo também vai mudar”. Insistir em machismos, preconceitos, misoginias e afins é tolice, os tempos mudarão para todxs e essa já é a realidade de muitas mulheres (esperança e luta diária). No conto “O plano”, Ferréz faz uma breve descrição de uma mulher da periferia dizendo que a mesma está em pé no ônibus lotado, mais de meia noite, com cadernos no braço e conclui que achar como aquela em outro lugar é quase impossível. Somos múltiplas (nozes ♥ ) em muitos espaços e encontrar representações que fogem do lugar comum para a mulher periférica é só o ouro, não preciso nem dizer isso para não ser repetitiva. Ogi e Ferréz contemplam (ainda que isso precise aumentar quantitativamente) as vozes dissonantes femininas em suas narrativas, seja na representação de uma que atua como chefe de família e tem seu marido em casa cuidando dos afazeres domésticos (o que traz para a pauta do rap a troca dos papéis socialmente construídos para os gêneros), seja na guerreira solitária que enfrenta jornada tripla de trabalho fora, estudo e afazeres domésticos para dar conta de sua sobrevivência nas cidades cinzas.
            A narrativa que conta a trajetória de um retirante nordestino comunica diretamente com a vida de tantas famílias, vejo a minha ali também, trata-se da faixa “Eu tive um sonho” na qual Ogi canta ,com sotaque, a saga de um senhor que concretizou sonhos  em meio ao cinza. Essa narrativa se entrecruza com a do pai do próprio Ferréz que recebe sua carta no conto “Assunto de Família”: “Sabe, Pai, o senhor deve estar jogando dominó ou baralho em algum barzinho, num canto de algum gueto, é o seu jeito, né não?” (2006: 79). Repentes de vencedores.
            São muitas as conversas entre essas obras, aproximações, dialogismos , construções de novos cenários, vozes dissonantes, representações múltiplas de vidas são matérias desses artistas que imprimem em suas criações as angústias e também levezas de uma cidade intrigante. Tudo isso sedimentando, cada um em sua especialidade, uma forma de contar menos excludente e mais rica diante das diversas facetas das muitas verdades e mentiras também. Quem ainda não leu Ferréz ou ouviu Rodrigo Ogi que faça isso, deixo a dica, ninguém é inocente na cidade cinza.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Love is in the rap

Depois de um final de semana entre os infinitos papos acerca dos sentires com uma amiga muito amada, cheguei em casa com vontade de me jogar aqui em mi casa tardia e pensar um pouquinho sobre o AMOR. Recorrentemente eu venho matutando sobre isso, minha dissertação de mestrado fala desse sentimento aí e as infindas (im)possibilidades que o povo preto enfrentou ao longo da História para cultivá-lo. Meu campo de estudo é a Literatura Brasileira Contemporânea, escolhi buscar a representação do amor das personagens femininas negras na produção de algumas autoras negras do atual campo literário (só pra contextualizar). Não à toa, em meio a leituras, reflexões e sons que me acompanham atualmente, saquei que eu deveria buscar a representação do sentir também no rap, aquele encarado como música ruim por muitos e como literatura por quase ninguém.
Não querendo me aprofundar (ahora) no estatuto do que é literário ou não, o questionamento que me impulsionou a compreender a relação do amor sendo representado no rap foi, justamente, o incômodo que isso causa.  Como assim esse tema UNIVERSAL que está em tudo quanto é música, desde que arte é sentimento, é tema proibido especificamente no gênero rap?
Volta e meia, meia e volta as críticas acerca das “novas” inserções temáticas no rap promovem debates intensos na cena e uma pá de gente sem noção fica por aí falando que a raiz contestatória desse gênero está sendo desrespeitada, uma vez que tem gente querendo cantar o amor. #MeuSonoVoltando2! Minha percepção é  que novos grilhões são forjados de maneiras sutis ainda hoje (nem tão sutis, na maioria das vezes) e o amor acaba atuando como artigo de luxo “permitido” a poucos, forte isso né?! Mas tem seu fundamento...
“Precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar” reflexão de bell hooks  em  “Vivendo de amor” (2006). Nesse artigo, a autora fala sobre a relação dos negros e negras com o afeto, sendo o foco para as últimas, tal questionamento me levou a pensar que essa capacidade de amar “impedida” estava fortemente representada em algumas obras de autoras afro-brasileiras, mas percebi também que isso vem sendo ressignificado pelo rap brasileiro. A autora bell hooks  pondera que mesmo com as dificuldades, o afeto foi manobrado nos tempos da escravização e conseguiu existir algumas vezes, mas seria irresponsabilidade apagar o impacto causado pelas negações enfrentadas por quem podia ter seus/suas companheirxs e filhxs vendidxs (quando conseguiam nascer) a qualquer momento. Que amor fomentar diante dessa realidade? O rapper Emicida disse: “Como você vai sonhar com o pódium, se amor é luxo e com a grana que nóiz tem só dá pra ter ódio?”. Esse questionamento sintetiza a angústia construída nos fios dos anos de pesadas opressões e que hoje tentam forjar para o rap como amarra de criação artística.
            Teve uma galera que abraçou o debate que o rap impôs no cenário musical brasileiro do começo dos 90 e que engessou temas como a violência policial, a miséria, o tráfico de drogas, o preconceito racial e outros massacres como expressões únicas do gênero. É algo do tipo “vocês cabem nessa caixinha aqui e eu te consumo até aí, ponto”, isso funciona como uma amarra estigmatizante e muito violenta. Por que sair desse discurso que nos é tão caro e tentar expressar outros anseios tão cruciais como o amor, é visto de forma tão polêmica para alguns defensores do “rap fundamentalista” e (mais preocupantemente) para uma mídia que usa isso da forma que melhor lhe convém?
Em outro post eu falei sobre o livro Mulher e escrava, de Sonia Giacomini , nele a autora apresenta o resultado de uma pesquisa feita tendo como base anúncios de periódicos do fim do século XIX que retratavam os debates públicos acerca da abolição, assim como serviam de palco para vendas e aluguéis de escravizadxs.  Há um subcapítulo que fala sobre a “família escrava”: “A negação dos escravos enquanto seres humanos implicou necessariamente na negação de sua subjetividade, que foi violada, negada, ignorada, principalmente nas relações entre eles: mãe escrava-filhos, pai escravo-filhos e homem-mulher escravos” (1988: 37)Após a abolição, o homem e mulher escravizadxs foram descartadxs de maneira estúpida nas ruas, sem trabalho, casa ou qualquer coisa que possibilitasse a constituição e subsistência de uma família, o que já é sabido. Novos arranjos diante do precário foram estabelecidos, famílias matrifocais, que viram seus homens (envergonhados por não conseguirem prover seus lares) serem engolidos pelo álcool, foram sobrevivendo e pouco mais de um século depois ecos dessa história ainda são muito presentes em nossa sociedade.
Outras resistências e maneiras de se constituir diante das mazelas desse mundo foram protagonizadas pelo nosso povo, vide a história dos quilombos e a luta que nos fez o que hoje somos. Contudo, as exceções sozinhas não conseguem explicar as cicatrizes que séculos de impedimentos causaram em nossa subjetividade. Segundo Neusa Sousa Santos , em Tornar-se Negronegros e negras tiveram de “organizar e lidar dinamicamente com o mosaico de afetos” (1983: 8) uma vez que sua emocionalidade  foi e é marcada por um processo histórico forte de inferiorização. Transpor angústias, buscar aleito e protestar são alguns dos motes para muitxs artistas, obviamente que os retalhos de vidas que integram nossa história também constituiriam essa rica colcha que é a música negra.
           O rap é uma das formas de expressão desse leque tão rico e, talvez, por ser um gênero ainda novo (fim da década de 70 pra cá) esteja mais sujeito aos dedos apontados (?!).  Outra hipótese é o fato de ter surgido com forte discurso de protesto, o que pode também tê-lo engessado na caixinha da ferocidade que fica longe da do amor (?!). Também pode ser uma explicação para a polêmica da expressão do amor nesse gênero, toda a áurea de preconceitos que o envolve e isso é o bastante para explicar qualquer tipo de limitação que queiram estabelecer para o mesmo. Acredito que essa última proposição elucide melhor todas as manobras que tentam forjar para esse gênero, pois “as raízes culturais do rap e seus primeiros adeptos pertencem à classe baixa da sociedade negra norte-americana; seu orgulho negro militante e sua temática da experiência do gueto representam uma ameaça para o status quo complacente da sociedade” como bem formulou Richard Shusterman (1998: 143). Outras vertentes da música negra falam de do amor e isso não gera tanto incômodo, mas como o rap surgiu com a banca da ameaça necessária, a atuação do amor como tijolo na construção dessxs rappers em suas canções destoa daquilo que se “aprendeu” a esperar dele. Esquizofrenia é pouco pra tentar explicar esse caminho torto! A lógica dos guardiões do status quo não deveria ser: antes falar de amor que das opressões infinitas que incessantemente edificamos para essxs excluídxs? Meu palpite é que exista mais subversão em amar que em vociferar até a mudez ou rouquidão, trata-se de uma revolução silenciosa e sentida por uma periferia mundial que se re(inventa) pelas vias do afeto. O rap expressa problemas locais dos respectivos guetos de seus/suas compositorxs, mas a globalização (que também tem seus males) permite um diálogo entre essas localidades periféricas formando uma ponte intensa de samplers e significados.
Tem gente pegando o tijolo-amor e tentando destruir o barraco inteiro. Os senhores, no período colonialista, decidiam o destino de possíveis famílias negras, decidiam sobre seu amor. Hoje, constituímos um grupo social ainda imerso em 99 problems, mas que quer, pode, deve, tem que, necessita AMAR! Tentar decidir sobre o nosso amor é démodé (como diria vóvis), vocês estão atrasadxs alguns séculos, esse poder aí é datado e COM CERTEZA foi sabotado em várias formas de resistência cotidiana que forjamos durante nossa história. Logo, nem nos anos de negreiros navios, o poder imaginado absoluto sobre nossos corações foi totalmente alcançado. Agora mesmo é que não vai rolar, nem vem de garfo que hoje é sopa (como diria vóvis novamente). O rap veio sabotar certos raciocínios com seu amor possível.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Mulher no rap só quer roupa justa e rebolado? As Marias respondem...

No começo da semana passada, uma reportagem sobre três cantoras de rap foi veiculada no portal G1:   http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2012/01/rap-feminino-brasileiro-prefere-cantar-felicidade-protesto.html. Antes de escrever minha opinião sobre o que ali foi construído, ponderei que o blogueiratardia poderia se tornar um blogueira-que-só-quer-falar-de-rap-tardia (rs), mas é fato que quando estamos próximos de algo, as convergências e acessos funcionam de forma a nos levar pra dentro daquilo que se tornou íntimo, de uma forma muito fluida.
O texto do G1 propõe, já no título, a correlação: mulher no rap = alienação e homem no rap = protesto.  A jornalista elegeu Karol Conká, Flora Matos e Lívia Cruz como seu recorte dentro das vozes femininas do rap brasileiro e argumenta que as letras dessas expressam sentimentos de felicidade, relacionamento e de amizade como sua temática principal, em detrimento de uma expressão do protesto, mais condizente com os fundamentos do rap.
Troféu joinha pra amiga jornalista que vacilou no começo, no fim e no meio da reportagem. No subtítulo da matéria, a autora diz que as cantoras pregam o fim do sexismo no rap, transpondo um mote reiterado por várias vezes no discurso dessas artistas. No entanto, afirma que tais cantoras são “sensuais e pouco engajadas”, fazendo um verdadeiro desserviço para a luta das mesmas que querem demarcar seu espaço dentro de uma cena cerceada e, ainda, estigmatizada para as mulheres. Alguém avisa pra colega que ela nada mais fez do que reafirmar o discurso do sexismo que constrói as amarras das performances e delimita violentamente os espaços de figuração destinado às mulheres e ao “feminino”. A caixinha dos seres sensuais e burros, para usar os estigmas eleitos pela jornalista, é a morada forçada que o discurso machista forjou para desqualificar as iniciativas femininas em quaisquer frentes.
A mesma mídia que diz que o rap “atual” é pouco engajado, ao se referir a novos destaques da cena, muda de ideia ao contrapô-lo ao rap feminino “alienado e vestido para matar”. Ou seja, ao aproximar o rap supostamente diluído masculino ao das garotas que estão construindo seu espaço nesse estilo, aquele imediatamente se transforma em campo de protestos ferozes. Ai que sono, hein gente???!!! Isso é evidenciado quando a jornalista diz que as cantoras não estão ligando pra falta de amor em SP ou para as desigualdades sociais, mas sim para roupas justas e o rebolado. A mídia que modela a forçada batalha entre diferentes gerações do rap (falei disso aqui ó: http://blogueiratardia.blogspot.com/2012/01/geracao-que-revolucionou-geracao-que.html), dizendo que ele agora está diluído com açúcar e afeto, agora o toma como altamente crítico e combativo. Tudo depende da perspectiva de que se fala, sobre o quê, em detrimento de quem.  #nonsense
Não é de hoje que as práticas associadas ao feminino são diminuídas nos mais diversos campos, a velha conhecida misoginia.  O século XX foi marcado por conquistas árduas das mulheres no espaço público, porém fazer-se presente no mundo do trabalho não foi garantia de que o respeito inexistente na casa patriarcal seria alcançado. Diminuir, desmerecer, sensualizar, rebaixar o trabalho, as ações e inteligência das mulheres foi a roldana da engrenagem encontrada pelo capital que precisava do trabalho feminino, mas que também devia continuar forjando as práticas responsáveis pela manutenção do poder masculino. É né, onde quer que estejamos, seremos diminuídas e nosso discurso será estigmatizado. =O
Não espero nada de melhor vindo da mídia, a matéria é um erro, também não é o momento de falar dos enfrentamentos diários que essas cantoras protagonizam dentro do movimento Hip Hop (isso merece um post exclusivo;) ).  Resolvi escrever falando do que conheço minimamente e do que responde a acusação de alienação, baladismos e afins feita às meninas que escolheram não mais engolir os sapos. Das três rappers citadas na reportagem conheço, de fato, o trabalho da Karol Conká e discordo demais do alheamento que jogaram pra ela.
A cantora tem muitas músicas que retratam o universo da balada, dos agitos e que muito me apetecem (hehehe) e isso é geracional, eu acho. Nós duas temos 25 anos e tenham certeza de que mulher preta, dessa faixa etária, que quer mais da vida do que um marido-meia-boca e uma casa-com-cheiro-de-detergente, que estuda e trabalha há milianos quer mesmo se divertir um pouco nesse mundo que nos quer silenciadas e tristes. Eu tô tipo querendo ser amiga dela neh?! (hehehe).  Enfim, além dessa temática que também evidencia a afirmação de uma autoestima adquirida num processo doloroso, Conká canta os preconceitos que enfrenta por parte de rappers que julgam seu trabalho como inferior e fala também de questões muito específicas às mulheres negras.
Esse é o caso da letra “Marias” a minha mais querida nos últimos tempos, que problematiza e evidencia a perspectiva identitária esfacelada de uma jovem negra que se vê diante do dilema da impossibilidade amorosa. Karol Conká aborda em sua letra algumas problemáticas que desestabilizam essa jovem ainda em formação e, de forma muito original dentro do arcabouço temático das letras de rap nacional atuais, adentra ao tema do alisamento dos cabelos e as implicações que o mesmo imprime nas vivências das mulheres negras.
No artigo “Alisando nossos cabelos”, bell hooks    constrói de forma bela e tocante um texto que se inicia associando o rito de “alisar os cabelos” ao momento de transição do ser menina para o ser mulher, era o que a autora e suas irmãs almejavam ansiosamente alcançar. Os primeiros versos da letra de Karol Conká dizem: “Escrevendo histórias vivendo cada segundo / Nomes do passado que ainda percorrem o mundo, / orgulhando envergonhando / muitas se sentem sobrando / sem estímulos na vida algumas seguem se enganando”. As jovens negras são aquelas que “seguem se enganando” em busca de uma aceitação dentro da sociedade que tem seus corpos como abjetos, mais adiante na tentativa de sentirem-se aceitas, tais jovens procurarão, no processo de alisamento dos seus cabelos, a solução para findar com a vergonha que sentem de seu corpo.
Na segunda parte da letra, Conká evidencia a possibilidade de uma existência positiva para essas jovens negras, mesmo ainda estando envoltas no berço de ausência de estímulos que as ofertassem outra vivência no mundo: “Sempre existirá aquelas que fazem a diferença / Não pensam em recompensa / Que tem caráter presença / Sempre te ganham licença / Chegam com classe decência / Tem argumentos propensos / Milhares já muito mais querem sempre um pouco mais”. Esse contraponto é bastante interessante, uma vez que não fecha o leque daquelas jovens negras, a música aqui atua como uma mídia que segue caminho oposto àquela que massacra esse segmento com representações estereotipadas apenas.
As jovens negras (nozes!!) referendadas na letra de Conká são profundamente afetadas por essa mídia que diariamente prega a beleza pautada na branquitude como única possibilidade de ser bela. Isso acaba levando-as por uma incessante busca do corpo mais semelhante possível ao do branco, sendo o cabelo crespo a antítese desse ideal, sua modificação atua como porta de entrada para o mundo “socialmente aceito”. O refrão de “Marias” enuncia: “A mocinha quer saber por que ainda ninguém lhe quer / Se é porque a pele é preta ou se ainda não virou mulher / Ela procura entender porque essa desilusão / Pois quando alisa o seu cabelo não vê a solução”. A autora bell hooks , no texto acima mencionado, faz um compêndio acerca das transformações sofridas pelo ritual do alisamento:  de momento íntimo de trocas entre mulheres negras até chegar no “rito” mercadológico e dolorido que figura o processamento químico atualmente. As jovens negras problematizadas nessa canção estão inseridas no contexto mercadológico-doloroso no qual os processos químicos de alisamento são explorados ao máximo.
No que diz respeito às relações afetivo-amorosas, bell hooks  conta da sua experiência como professora e dos relatos que ouviu de algumas alunas negras e concluindo que: “As mulheres negras heterossexuais falaram sobre o quanto os homens negros respondem de forma mais favorável quando se tem um cabelo liso ou alisado” (2005). O eu-lírico dessa canção evidencia o problema da jovem negra brasileira contemporânea que se vê subjugada e preterida nas relações afetivas mesmo após ter se submetido ao processo de alisamento químico dos cabelos.
Beatriz Nascimento ♥, no texto “A mulher negra e o amor”, disse que o ideal de branquitude “é uma violência invisível que contrai saldos negativos para a subjetividade das mulheres negras, resvalando na afetividade e sexualidade destas” (1990). Nos últimos versos, Karol Conká diz sobre a jovem negra: “Sai de saia justa, salto alto, miniblusa / Se sentindo madura com vergonha da pela escura / Se decepcionando com o reflexo do espelho / E querendo o mesmo visual dourado da modelo”. Percebemos a influência direta da não aceitação do corpo negro sendo posta em contraponto ao ideal branco de beleza, a compositora articulou de maneira muito sensível o dilema da dor vivido por jovens negras.
Acho que eu vi muito mais do que roupa colada e rebolado e vocês? Acredito que através de pequenos arranjos, como esse articulado por Conká a partir da arte, a formação identitária de uma nova geração de meninas negras será estabelecida de maneira menos dolorosa, ou pelo menos com um fundo musical mais expressivo para as mesmas.

Link para vocês ouvirem “Marias”: http://www.youtube.com/watch?v=139YlOe8uXg


domingo, 15 de janeiro de 2012

É comum e é "normal": racismo na minhoca de metal

O texto abaixo foi escrito pelo amigo Paulo Rhasta, ator e produtor cultural carioca, que presenciou mais uma cena do racismo brasileiro que muito “CORDIAL” te “pede pra sair com aquele jeitinho”.

Foto feita por Paulo Rhasta na ocasião
Hoje, ao utilizar nosso transporte público, me deparei com mais uma cena do cotidiano pouco comum. Um homem, em situação de rua, de melanina acentuada, aparece andando na estação do Estácio na plataforma oposta à minha, chamando a atenção de todos que estavam ali para embarcar. Logo em seguida ouvimos pelo auto-falante os seguranças sendo acionados e imaginei na hora o porquê. Rapidamente, chegou um segurança que o abordou, com a educação que é treinado pra ter mesmo sem vontade, aquele homem que nada fazia, apenas esperava o seu transporte. Quando eu e uma senhora entendemos a situação, sem combinar, partimos para o outro lado a plataforma para saber por que aquele cidadão estava sendo convidado a ser retirado da estação.
Nos aproximamos e perguntamos ao guarda porque ele estava sendo retirado, ele nos respondeu:
- Estamos averiguando se ele pagou passagem.
- Mas ele esta dizendo que pagou e que embarcou na estação de Tomas Coelho e que está indo para Botafogo.
- Mas ele não pode transitar dentro da estação descalço.
Na mesma hora saquei minha Havaiana branquinha que estava na mochila que tinha acabado de comprar e dei para ele.
-E agora?
- Tenho que esperar meu supervisor responder seu ele pagou passagem ou não.
Na mesma hora eu e a senhora nos propusemos a pagar a passagem, mas o segurança não deixou.
Resumo da historia: perdemos três trens esperando a resposta, porque aquele homem estava sendo impedido do seu direito de ir e vir de metrô, uma resposta que não ía vir nunca. Embarcamos eu, ele e a senhora. 

Por Paulo Rhasta, dezembro de 2011. 

* Rhasta, infelizmente o racismo nos oferta cenas como essa diariamente, pouco comum mesmo é fazermos algo diante delas, sei que muitas vezes a gente se cansa, mas será sempre preciso existir aquelxs que estranham. Você e essa senhora fizeram a diferença. Somos poucxs, mas acreditar que faremos algo que modifique o Brasil da Central nos faz caminhar. Asé!

** Amigo, tive de colocar um título para postar o texto. ;)

*** O blogueiratardia é também espaço de partilhas não umbiguistas!! Amigxs, seus textos são sempre bem vindos por aqui. ;)

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Por nós, por amor

Todo mundo já foi a um show em que os sentimentos pareciam transbordar do palco até você, x da poltrona, na velocidade da luz. Isso ocorreu comigo terça-feira, no espetáculo emocionante da Ellen Oléria e do Gilberto Gil. O velho tropicalista baiano que me desculpe, meu pai, que me ensinou a amá-lo, que me desculpe também, mas o sentir aos rios veio até mim através da voz e magia da amiga Ellen.
Uma noite especial na companhia da minha irmã apenas. Duas sistas, mãos dadas, cumplicidade, risadas, micos de míopes que sentam nas poltronas erradas e o “falar no olhar” que é raro à maioria das relações. Quem já viu apresentações da Ellen Oléria sabe a natural luz que dela emana e as traduções do sentir, do entristecer, do amar e do guerrear que ela imprime em sua poesia, seja ela nova ou antiga. A emoção está sempre presente quando a vejo, mas naquela noite foi diferente, talvez a atmosfera menos agitada do Centro de Convenções tenha proporcionado uma intimidade maior para eu e minha irmã que aproveitamos o conforto e aconchego para ouvirmos várias músicas com os dedos entrelaçados.
Lá pelas tantas, chegou a hora de a Ellen trazer nossa mãe ali pro meio da apresentação, SALVE, nega! Não sei o que escrever para saudar a “Antiga Poesia” que é o hino mais belo que os movimentos de mulheres negras poderiam ter. Clementina, Lecy, Jovelina, cotistas, caribenhas, clandestinas, negras da América Latina, minha mãe e avós todas ali juntas, entre nossas mãos, calor, história e lágrimas que inevitavelmente transbordaram como que querendo encontrar o sentimento que vinha daquele palco, sentir de toda uma vida.
Vidas de poesia sem maestria, de quem teve de trabalhar e não pode estudar, esquentando a barriga no fogão e esfriando na bacia de água fria. Essa é a ordem do dia de mulheres pretas nos recantos mais escondidos e diferentes desse mundo e sei que todas elas sentirão a mesma coisa que eu e minha irmã sentimos quando ouvirem essa canção.  Sentirão um êxtase, um conforto, uma melancolia de história dolorida também, mas que combinada com uma mescla de coração que bate em compasso íntimo e singular, soprará fôlego de guerra imediato nessas Dãdaras e Akotirenes.
Tudo no mundo converge muitas vezes, não sei qual é a liga da vida que faz com que acontecimentos aleatórios tomem dimensões importantes na nossa trajetória. Sabe quando um livro cai na sua mão e parece que caiu foi a maçã do Newton na sua cabeça? Foi o que rolou com o Mulher e escrava (1988), da Sonia Maria Giacomini, fruto de uma pesquisa feita tendo como base anúncios de periódicos do fim do século XIX. Os estudos acerca da mulher negra escravizada são escassos (novidade?!) e diante dessa realidade, a autora se propôs a fazer um estudo acerca das relações sociais vivenciadas por essas mulheres no período da escravidão.  Nessas páginas, versos da “Antiga poesia” estão materializados em fragmentos de vidas da nossa linhagem, de uma forma muito compromissada e densa.
Passei a leitura toda mastigando as pedras que tivemos de carregar (lembrando que isso quebra dentes e causa indigestão). Banguela e com o estômago duro, topei correr (atrasadona porque também estava acabando de fichar esse livro) até esse espetáculo solvente de pedregulhos e ourives do momento-joia-preciosa que vivenciei, o que valeu muito por todas as penas e me refez ali, por nós, por amor.

*Esse post tem milhões de referências diretas às músicas da tão querida e inspiradora amiga Ellen Oléria. Vídeo da “Antiga Poesia” aqui ó :http://www.youtube.com/watch?v=iwbWZuVkI0w
 **As irmãs Andressa e Krissiane agradecem ao amigo Abayomi Mandela pelos ingressos. Valeu, pretinho! =)
***Janeiro é mês das minhas poemas Cida e Kriss, mãe e irmã capricornianas, pode?! Esse post é de vocês! As amo muito! =*

domingo, 8 de janeiro de 2012

A geração que revolucionou, a geração que vai revolucionar...

Só agora eu resolvi comentar a entrevista que o Dexter deu essa semana pra MTV (tá aqui ó: http://mtv.uol.com.br/musica/dexter-midia-quer-criar-movimentinho-paralelo-ao-rap  - não disse que eu era tardia?!). Pois bem, assim que a li, me recordei que, no fim do ano passado, assisti a um show fera do Emicida com o Dexter no Centro Comunitário a UnB. Lembro-me de ter ficado louca porque antes deles entrarem no palco, rolou o X, ex- Câmbio Negro, cantando Sub-Raça (nunca tinha visto ao vivo).  Na hora que testemunhei Dexter e Emicida cantando juntos, naquele palco (nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros? LEMBRAM?! AÇÕES AFIRMATIVAS MODIFICARAM ESSA ESTATÍSTICA, mas isso é outro assunto), redoma-mór da elite, só pensei isso: tiveram que engolir a “sub-raça”.
É evidente o respeito mútuo existente entre os dois artistas. Na entrevista em questão, Dexter reconhece o trabalho dos companheiros Emicida e Criolo, porém, faz suas ressalvas em relação ao uso que esses fazem da mídia ou do uso que a mídia faz desses. O que eu consigo ver é o trabalho da mídia corporativa sendo feito de maneira bastante eficaz, Dexter, no fim das contas, acaba sendo subutilizado por ela como lenha de uma fogueira que a mesma não pretende apagar tão cedo, atiçando fogo no “movimentinho paralelo” que ele mesmo denuncia que ela promove.  Esfacelar e tornar antagônico o trabalho de duas gerações com acessos, vivências e experiências diferentes (mas nem tanto) é tentar fazer um duelo MMA RuthXRaquel (Mulheres de Areia, todxs sabem, hehehe) rolar num pseudo-octógono do rap.  Concordo com o Dexter quando ele fala que é preciso cautela pra lidar com a mídia, discordo do Emicida quando ele diz que a TV é um grande veículo que leva informações, enfim, sem pesar de fato o trabalho de silenciamento que ela promove para “levar informações”. O fato é que o extremismo dos 8 ou 80 é fadado ao fracasso, e isso já é um é clichê. Dexter pode agir como uma peça de dama na mão dessa galera que quer vender um embate, e não um debate, para outra galera-criada-a-sustagem-e-leite-ninho- que- passa- os- domingos- no- parque.  Emicida escolheu levar suas críticas pra dentro da Casa Grande, mas ainda fica o receio do reduto de Gilberto Freyre maquiar sua denúncia transformando-a na falácia democracia que só funciona na literatura.
Para além de não comprarmos o MMA que a Maldita Mídia Anencéfala nos quer empurrar, é preciso olhar diacronicamente para o rap brasileiro e perceber o chão bem fundamentado que a “geração que revolucionou” construiu para que a “geração que vai revolucionar as novas” pudesse existir. A música sempre será um movimento, uma dinâmica social que transpõe os conflitos que presencia para seu fazer subjetivo através de vozes inseridas nos mais diversos lugares de discursos. O início da década de 90 apresentava o cenário de uma geração que começava a esquecer do sabor do chumbo na boca, isso falando da classe média, imagina o povo preto pobre que gosto não sentia? O do VAZIO, certamente. É evidente que o surgimento do rap, uma música que queria e quer vociferar contra as mazelas, naquele momento, se daria da maneira mais acirrada possível e isso é algo que ninguém nunca vai conseguir tirar do rap. Tive uma paixonite pré-adolescente por um rapaz de Taguá, apelidado “Preto tipo A”, que correspondeu ao meu interesse e falava pros amigos que ía “buscar a preta dele no portão da escola”. Ali, através daquelas vozes graves que enunciaram o negro drama para todo o país, me percebi preta. Essa foi A revolução que geração que revolucionou ofertou à minha. A galera nova que vai aos shows do Emicida, muitas vezes, tem o primeiro contato com esse fundamento do rap brasileiro através do set do DJ Nyack nos intervalos, adolescentes conhecem Sabotage, RZO, Racionais, 509E e, assim, a geração que vai revolucionar estabelece a linha do tempo do rap e saúda os antecessores para construir sua trajetória.
Anos se passaram, o tempo de me buscarem no portão da escola também, cursei a universidade (COTISTA, SIM!) e agora me enveredei no Mestrado. Minha trajetória e a da minha família acompanharam as mudanças empreendidas no seio da sociedade brasileira nos oito anos do governo Lula. O aumento relativo do poder de compra das classes mais baixas e o surgimento de políticas públicas (nunca antes vistas na história desse país) direcionadas a quem sempre morou no barraco de pau lá da pedreira, sacudiram o cenário social atual. Hoje, existe uma geração com novos anseios de revolução, uma pá de gente que faz seus corres e agora viaja de avião, faz um rolê no shopping ou compra um tênis maneiro, mas que, ainda, vê a moça do check-in fazer cara feia para atendê-la, ainda se percebe persona-non-grata quando entra em certas lojas e vê a legitimidade de suas conquistas materiais sendo postas em xeque constantemente.  A leitura que faço do rap, que a mídia corporativa tenta fagocitar atualmente, é que ele põe pra jogo o sentimento de quem hoje, minimamente, se desloca. Zygmunt Bauman, em Cidadania e Globalização: as consequências humanas, diz que muita gente ainda está imóvel e vê seu único chão “deslocar-se sobre seus pés”, não podemos cair na ignorância de achar que está tudo lindo e a mobilidade é uma benesse do mundo globalizado. Porém, (ainda bem que HÁ PORÉM nesse caso) paulatinamente,  estamos galgando espaços, enegrecendo-os e contrariando as estatísticas. Daí que se em meio a esse não-lugar a gente ouve um cara, que podia ser um primo nosso, dizendo que tá cansado de “só os ternos serem pretos nos lugares chiques” rola uma gargalhada-alívio de quem encontrou compreensão e pensa que ele sacou tudo.
Trata-se de uma geração do rap que está revolucionando outra, a juventude 90 (preciso dizer que já não é a minha? rs),  uma galera que cresceu lançando mão de ferramentas muito interativas, numa velocidade louca, fragmentados diante de muitas identidades, que se ama muito (quantas fotografias, cores, auto-culto...hehehe) e que, por isso mesmo, quer ouvir sobre o afeto  também! Cada revolução tem suas especificidades e as atuais têm na rede, seu campo de mobilização, uma ferramenta preciosa. Essa sim, eu acredito, consegue burlar a mídia-meia-boca e fazer-se projetar de forma menos mediada e manipulada.  Somos pretxs em movimento, como já disse o Mensageiro da Verdade Bill, e o que a mídia esquece de ressaltar é que para essas duas gerações revolucionárias do rap a máxima “você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você” é o que as unifica, morô, irmãos(as) ?